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03/10/2021

Uma reflexão sobre a história de Mato Grosso do Sul

No dia 11 de outubro Mato Grosso do Sul completa 44 anos. Sua criação, pela Lei Complementar n. 31 de 1977, durante o regime militar no Brasil, deve ser entendida como parte integrante de um processo que remonta séculos atrás. Neste artigo, os historiadores Valmir e Lúcia Corrêa fazem uma reflexão sobre a história do estado ressaltando a necessidade de compreender e explicar a sua sociedade e as suas marcas como fronteira Oeste brasileira.

 

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MS 44 ANOS

 

Uma reflexão sobre a história de Mato Grosso do Sul

 

Valmir Batista Corrêa e Lúcia Salsa Corrêa*

 

Abordagem crítica e ampla

É possível compreender a complexidade e o conhecimento dos fatos relativos à construção de Mato Grosso do Sul, como uma nova região, a partir da reflexão sobre a história mato-grossense de longa duração. Há ainda muitas histórias que não foram bem contadas, e também muitas invenções de fatos e de personagens históricos, culminado com a produção de versões fantasiosas e de mitos. Esta história tem sido resultado de interpretações enviesadas conforme os ventos políticos e as relações de poder de cada época. Por isso, é necessário abordar a história de Mato Grosso do Sul de forma crítica e ampla, buscando compreender e explicar a sua sociedade e as suas marcas como fronteira Oeste brasileira.

Existe uma expressiva população pouco interessada na história de seu próprio Estado (e esta é uma das razões da falta da noção de pertencimento e da falta de valorização da cultura regional), o que torna oportuna a produção de textos acessíveis aos leitores, acadêmicos ou não, sem perder de vista a análise aprofundada do passado. Dentre os documentos históricos, ressalta-se a importância dos jornais e periódicos relevantes como retratos de uma época, que fornecem informações preciosas mesmo seguindo linhas políticas e ideológicas diferentes e conflitantes. Cabe ao historiador filtrar as notícias e opiniões publicadas e extrair delas os fatos mais próximos da realidade vivida, mediante instrumentos científicos próprios das ciências humanas. Esta ideia é inspirada no historiador Fernando Novaes: a história é nada mais que aproximações.

Ocupação diferenciada

A criação do Estado de Mato Grosso do Sul em 1977, durante o regime militar no Brasil, deve ser entendida, portanto, como parte integrante de um processo histórico que imbrica as disputas por terras e as articulações políticas elitistas, conservadoras e autoritárias. “Pari passu”, a extensa região de Mato Grosso foi ocupada mediante formas diferenciadas, distanciando a sua banda Norte da fronteira sulina. Basta rever a história colonial e os tempos do Império para perceber que a concentração de poder em Cuiabá fortaleceu o Norte de Mato Grosso em detrimento da sua remota fronteira meridional.

Na construção social e política da banda sulina mato-grossense, a efetiva ocupação não se deu de forma simultânea à ocupação do Norte, sendo inicialmente um espaço apenas cortado por rotas das Monções e por tropeiros que demandavam Cuiabá. A comunidade indígena do território Sul foi simplesmente ignorada na historiografia tradicional, a despeito dos choques entre conquistadores e povos nativos, em todos os pontos do continente. Vale sempre ressaltar que Mato Grosso se caracterizou por sediar a grande e diversificada população indígena que, no entanto, permaneceu invisível e completamente desrespeitada em seus direitos aos olhos dos posseiros e conquistadores das fronteiras internas nesses extensos sertões. E durante as guerras intestinas entre coronéis rurais ou urbanos, os índios apenas eram lembrados no recrutamento como mão de obra compulsória, ou como componentes dos exércitos particulares dos chefes políticos, como batedores de tropas em decorrência do conhecimento do território, independente do papel fundamental que as sociedades nativas exerceram no abastecimento das fazendas mais isoladas nos cerrados e no Pantanal.

 

Afloramento do separatismo

Uma clara ruptura da extensa região mato-grossense, real ou inventada conforme interesses políticos, gerou gradativamente a formação de uma sociedade regida por chefes políticos e grupos divergentes que almejaram o poder local tanto quanto a hegemonia da máquina político-administrativa regional. Nos anos finais do século XIX apareceram as primeiras manifestações explícitas separatistas, decorrentes da ocupação da extrema fronteira Oeste e da formação de um território marcado pela violência, pela insegurança, pelo isolamento de seus habitantes, pela exclusão das populações indígenas nativas e pelas linhas flutuantes que os separavam das repúblicas do Paraguai e da Bolívia. Tais manifestações excluíam uma parte significativa das populações de ambas as bandas mato-grossenses, que ficou alheia aos interesses dos políticos da fronteira e do centro administrativo em Cuiabá. As lutas coronelistas e as disputas políticas periféricas tiveram motivações localizadas em seus domínios rurais e urbanos, e sofreram com o monopólio de Cuiabá no controle da máquina política e administrativa regional.

Esta tendência persistiu e adentrou o período republicano, quando afloraram de maneira ostensiva as ideias separatistas no Sul de Mato Grosso decorrentes de sangrentas lutas coronelistas e de posseiros. Os episódios que explicam esta situação tiveram por sustentação a mescla de três pilares formadores dessa fronteira e da violência do cotidiano: 1) a força política da “Companhia Matte Larangeira”; 2) o coronelismo guerreiro; e 3) sua linha auxiliar, o banditismo. Outros fatores, tais como as grandes distâncias entre os centros populacionais do Norte e do Sul, a falta de comunicação eficiente e o favorecimento de municípios e de políticos do Norte, propiciaram um campo fértil ao descontentamento e à penetração das ideias separatistas. Por outro lado, o governo estadual esteve sempre atento ao risco de um desmembramento regional, pois, a qualquer ideia de separatismo respondia com a mão pesada da repressão de forma imediata e geralmente eficaz, usando de artifícios da máquina do estado, do empreguismo como forma de cooptar os descontentes, de intensa propaganda oficial na imprensa regional e de repressão explícita.

 

“Amansamento” dos projetos rebeldes

O modelo tradicional e recorrente do coronelismo guerreiro foi gradualmente esmorecido (ao menos temporária e aparentemente) com a interferência da ditadura de Getúlio Vargas, alheia aos interesses regionais. O desarmamento imposto, a repressão político-policial, a imposição do ideário unionista em contraposição ao poder federalista, a nomeação de interventores e a censura à imprensa exercida pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), foram fatores de “amansamento dos projetos rebeldes e separatistas na região. Porém, não significou o desaparecimento completo das condições históricas que alimentaram o sonho de criação de um novo território, nem tampouco sepultaram definitivamente as práticas do coronelismo político e tradicional. Concretamente, ocorreu uma recomposição dos antigos coronéis e vigorou o protagonismo de algumas famílias poderosas através das gerações seguintes.

No caso do pacto entre coronéis, a submissão foi intermediada por troca de favores e espírito de corpo que uniram e preservaram o poder construído nas práticas cotidianas da violência, explícitas ou subliminares. Nessa linha de interpretação, pode ser percebida uma incontestável semelhança das práticas políticas dos separatistas do século XX com as velhas artimanhas do coronelismo tradicional, observada nos documentos mais contundentes como manifestos e boletins, alguns apócrifos, outros declaradamente autorais. A partir da década de 1930, tal estrutura de poder autoritário utilizou-se de um verniz democrático, da fala em nome do povo, embora excluísse do poder de decisão a maioria da população, e do populismo que deslocou o eixo do poder local do ambiente rural para o ambiente urbano, mas sempre carregando em suas entranhas os germes do conservadorismo e da violência. Assim, esse conservadorismo de políticos mato-grossenses, mormente no Sul do Estado, teve as características típicas do pensamento elitista que planeja o futuro com os olhos do passado e com a preservação de privilégios.

 

Disputa de grupos opostos

É necessário lembrar ainda que o Estado de Mato Grosso ratificou na prática a “Lei do 44” mantendo sua fama de “terra de ninguém”. O banditismo grassou por todo o território mato-grossense, mas notabilizou o Sul como sua área preferencial, onde a fronteira ofereceu sempre a alternativa de sobrevivência de rebeldes e de criminosos, ratificando a anomia e a má fama de impunidade da região. Bandidos, pistoleiros e bandos de contraventores que atacavam fazendas e infernizaram as pequenas cidades, tornaram-se argumento político para justificar o separatismo.

A partir dos anos de 1950, as manifestações separatistas sob as formas de “lutas guerreiras” não mais aconteceram como no passado, mas prosseguiram as articulações expressas na luta dos grupos políticos opostos, tendo por base a cidade campo-grandense sem, contudo, envolver todo o território sulino. O povo assistia “bestializado” às articulações de quem disputava o poder, a monopolização da máquina eleitoral e administrativa que uma nova unidade da federação poderia oferecer.

As reivindicações dos separatistas ao longo dos anos 1930-1970 foram sistematicamente frustradas, apesar das aparentes agitações e da campanha persistente contra a centralização do poder em Cuiabá. Os documentos, e especialmente os jornais, repetiam insistentemente as críticas e argumentos em favor de uma divisão do Estado de Mato Grosso e da criação de territórios federais, ou mesmo da mudança da capital para Campo Grande. Apesar do barulho causado através da imprensa escrita e da panfletagem, os sulistas não lograram obter a força necessária para atingir seus projetos separatistas. As disputas intestinas (até no âmbito pessoal) e a fragilidade da rede de relações políticas com o poder central surpreenderam os sulistas com uma solução de “cima para baixo”, típica da ditadura militar que governou o país por vinte anos.

 

Ao largo da história do povo

Finalmente, a criação do Estado de Mato Grosso do Sul, pela Lei Complementar n. 31, de 11 de outubro de 1977, fruto de um ato manifesto do presidente Ernesto Geisel, amparado em seus tecnocratas, passou ao largo da história do povo sulista e dos “divisionistas”. Vigorou a narrativa da centralização do poder e dos projetos modernizantes que pretendiam domar o bravio território das fronteiras da nova unidade da federação, que permaneceu fincado em suas raízes históricas e singulares. A artificialidade histórica da Lei Complementar n. 31, assim como o bipartidarismo que não representava a realidade dos grupos e da sociedade brasileira, deixou às claras as disputas pessoais e irreconciliáveis de políticos sulinos e a falta de consenso para a indicação do futuro governador.

A imprensa regional, embora tomasse partido de pessoas ou de grupos antagônicos, possibilita hoje aos historiadores a leitura crítica que desnuda a narrativa e os projetos pessoais de poder, e dos que mudaram de posição conforme os ventos emanados do Planalto.

Resta saber de que lado o povo, esta entidade abstrata apenas lembrada em data de eleição para legitimar discursos demagógicos, posicionou-se nesse processo histórico. Políticos e a imprensa regionais expressaram-se sistematicamente em nome dos sul-mato-grossenses sem que houvesse consulta real ou plebiscitos transparentes a respeito de suas demandas. Indicadores de apoio popular se resumiam aos votos destinados aos candidatos a cada pleito, o que na maioria das vezes eram distorcidos pelas velhas práticas de campanha: o voto de cabresto, os currais eleitorais, a compra de votos e os descaminhos nas apurações. Os exemplos são fartos nesses casos e hoje existem o marketing político e as redes sociais como armas de manipulação dos eleitores e de criação de mitos.

Após o fim do regime militar e a democratização do país, a despeito da “esperança equilibrista”, as crises nacionais e internacionais que ocorreram no final do século passado não permitiram que Mato Grosso do Sul fosse o almejado “Estado modelo” do país.

 

* VALMIR BATISTA CORRÊA (cadeira 01 do IHGMS – patrono: João Severiano da Fonseca) e LÚCIA SALSA CORRÊA (cadeira 39 do IHGMS – patrono: Ricardo Franco) são historiadores com mestrado e doutorado pela USP, professores aposentados da UFMS; autores e co-autores de diversos livros e artigos sobre a História Regional.

** Ilustração de Jacinto para o artigo “História e estórias de uma velha pendenga revisitada” (de José Octávio Guizzo), publicado originalmente na revista MS Cultura, n. 3, 1985.

 

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Ilustração: Reprodução: MS Cultura

 

                                              

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Choques entre conquistadores e povos nativos, disputa por terras e articulações políticas conservadoras estão na gênese do estado que um dia almejou ser “modelo” do país. Para compreender a complexidade da formação de Mato Grosso do Sul é necessário fazer uma reflexão sobre a história da região ao longo do tempo.

 

Autor: Lúcia Salsa Corrêa e Valmir Batista Corrêa

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