18/09/2022
EM MEMÓRIA
O herói e o estadista
Dias atrás, em pouco mais de uma semana, deixaram nosso convívio duas pessoas cuja história de vida foi de bons exemplos. Ambos, associados do IHGMS: Francisco Leal de Queiróz e Agostinho Gonçalves Mota. Conterrâneos e contemporâneos, se conheceram ainda nas primeiras letras. Um seguiu e se tornou um grande magistrado e estadista, o outro, por necessidade, um trabalhador braçal sem completar os estudos. Entretanto, constituíram-se referência por suas lutas. O carroceiro virou herói nacional, reverenciado pelo grande estadista. Grandes homens que usaram das suas qualidades e caráter para o bem comum.
Nesta página, um tributo de Heitor Freire ao amigo doutor Leal e resenha de uma conversa de Madalena Greco e Eron Brum com “seu” Agostinho em uma tarde de anos atrás em que ele falou um pouco de sua vida.
Francisco Leal de Queiróz
Um varão de Plutarco
Heitor Rodrigues Freire*
Foto: Reprodução
Legenda: De inteligência privilegiada, Leal de Queiróz aliou com maestria suas atividades de advogado, poeta, escritor e político.
Plutarco (46 d.C. – 120 d.C.) foi um filósofo e prosador grego que, segundo informa a tradição, escreveu cerca de 200 livros. Deles, o mais conhecido é “Vidas Paralelas”, em que compilou biografias de gregos e romanos ilustres. Desta obra é que se originou o termo varão de Plutarco, que se refere ao homem probo, dedicado à pátria, como são os gregos e romanos retratados por Plutarco.
No dia 29 de agosto, faleceu um cidadão dos mais insignes do nosso estado, Francisco Leal de Queiróz. Natural de Paranaíba - MS (8 de janeiro de 1927), ele foi advogado, poeta, escritor, político à moda antiga, prefeito de Três Lagoas, deputado estadual por três mandatos, secretário de Interior e Justiça do primeiro governo Pedrossian, no antigo Mato Grosso em 1965. Ele soube, como poucos, aliar sua argúcia intuitiva a uma inteligência privilegiada, além de ser muito culto e possuir uma habilidade natural de ouvir as pessoas, saber dialogar com respeito e ter uma capacidade oratória de convencimento que angariou amigos por onde passou ao longo de sua trajetória de vida de 95 anos.
Ainda na adolescência, quando cursou o ginásio no Instituto Americano de Lins - SP, o Leal, como era conhecido, despertou para a política por influência de uma colega, irmã do saudoso Ulysses Guimarães, que o convidou a participar de um comício quando Ulysses postulava o seu primeiro mandato como deputado. Na ocasião, Ulysses ficou impressionado com a capacidade oratória de Leal e vaticinou para ele uma brilhante carreira política.
Assim, Francisco Leal de Queiróz foi estudar Direito no Rio de Janeiro. Antes de terminar o curso, precisou morar por um breve período em sua cidade natal, onde foi nomeado promotor de Justiça, mesmo sem ter se formado advogado. Coisas da política antiga. Tempos depois, voltou para o Rio e concluiu seus estudos.
Leal foi suplente de senador, representante do nosso estado em Brasília, secretário de Justiça e depois de Segurança Pública e procurador do Ministério Público Especial junto ao Tribunal de Contas de MS. Ele também teve intensa atuação no meio cultural de nosso estado. Foi membro da Academia de Letras de Mato Grosso, do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso, da Academia de Letras de Mato Grosso do Sul – da qual foi presidente –, e também do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, onde, ultimamente, integrava o quadro de associados eméritos.
Conheci o dr. Leal quando ingressei no quadro de associados do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, do qual fui vice-presidente por 12 anos. Quando fui admitido, em 2002, o Instituto era localizado na sede da Academia de Letras. Naquela época, Leal mandou construir – pagando do próprio bolso –, uma dependência no fundo da Academia para sediar o IHGMS. Leal era muito amigo do nosso então presidente, o professor Hildebrando Campestrini. Tive o privilégio de experimentar uma longa e profícua convivência com ele. Aprendi muito em nossas intermináveis conversas; o Leal me contava histórias incríveis de situações e momentos políticos dos quais participou, muitos deles como protagonista. Ele influenciou positivamente incontáveis gerações de políticos e profissionais do Direito.
Meu amigo Francisco Leal de Queiróz deixa um legado de seriedade, responsabilidade honestidade no trato com a coisa pública – um exemplo que se perpetuará nas mentes e corações de todos que tiveram o privilégio de conviver com ele. Tenho certeza de que ele já faz parte do seleto grupo de seres iluminados na vida espiritual. Leal é, pois, um verdadeiro varão de Plutarco.
* Heitor Rodrigues Freire (associado do IHGMS - cadeira 37, patrono: Harry Amorim Costa).
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Agostinho Gonçalves Mota
Um herói entre nós
Maria Madalena Greco e Eron Brum*
Fotos: Reprodução
Legenda: Do álbum de fotografias: Agostinho Mota em registro da época da guerra e em cerimônia de 2013 (primeiro à direita) com “pracinhas” remanescentes em MS.
Seu Agostinho – como era chamado pelos confrades do IHGMS – nasceu em Três Lagoas - MS, em 30 de abril de 1925. Por uma questão de ajustes com a justiça, para não pagar multa por atraso de comunicação de nascimento, foi registrado no dia 7 de maio.
Estudou por dois anos na Escola 2 de Julho, do professor João Magiano Pinto, o precursor do Escotismo em Mato Grosso, mas que foi suficiente para aprender o básico que levaria por toda a vida.
Justamente pelo fato de ser alfabetizado, diferenciou-se quando aos 17 anos ingressou no Exército Brasileiro como voluntário. Durante sua permanência em Campo Grande e posteriormente na sua cidade natal, foi ajudante de “furriel”, o encarregado de fazer os pagamentos, em envelopes, aos soldados.
Vendo o seu desembaraço, o capitão, comandante do 33 BC, convocou-o para seu auxiliar direto. Em um tempo em que ser auxiliar implicava até fazer serviços domésticos, declinou (desobedeceu) à ordem e foi enviado para a inspeção de saúde em Campo Grande.
O número 407 – seu registro na caserna – veio fazer a inspeção e curso de especialista em armas. Estava entre aqueles que iriam compor a Força Expedicionária Brasileira no teatro de operações da Segunda Guerra Mundial, na Itália.
Muitos dos convocados desertaram. Uma frase resumia o espírito daqueles que eram chamados a servir: “Mato ou Morro – fujo para o mato ou para o morro”.
Agostinho atribui seu engajamento, ainda que involuntário, à FEB, por conta de sua formação moral e cívica, recebida na família e no pouco tempo de escola.
Foram tantos os que evadiram-se que foi necessário formar um batalhão em São João Del Rei, nas Minas Gerais, juntando soldados de várias localidades. E, posteriormente, findada a guerra, todos foram anistiados, pois, não havia como punir tantos jovens.
A vocação à rebeldia e insubordinação ainda se fez presente mesmo antes do embarque. Querendo ver a família em Três Lagoas e não conseguindo permissão, combinou com um grupo de também insatisfeitos “fugirem” através da estação Lagoa Rica da NOB, alguns quilômetros de Campo Grande. Só não contavam com o “comitê de recepção” armado que os aguardava naquele lugar. Foram presos e encaminhados para Campo Grande.
Já próximo da partida, recebeu autorização para despedir-se da família e rumou para sua cidade, escoltado. Lá chegando, feitas as recomendações e abraços, escondido da escolta, comprou alguns litros de aguardente que vieram camuflados em sua bagagem. O oficial encarregado da carceragem tentou em vão descobrir como a bebida que causou tamanha algazarra havia entrado na prisão.
O caminho para embarque foi longo – Três Lagoas, Bauru, São Paulo e Rezende no Estado do Rio de Janeiro. Depois, mais 15 dias embarcado no navio U.S.S. Man para chegarem a Nápoles, na Itália.
Em terra, os grupos foram dividindo-se. O de Agostinho foi para Pisa e posteriormente para Monte Castelo. Do seu grupo original de mato-grossenses, lembra-se que ficou junto com apenas um. Este que, depois da guerra, foi prefeito em Paranaíba.
Por conta de indisciplina e eventuais problemas com os nativos, foi formada a Polícia do Exército (P.E.). A maioria era oriunda do sul do Brasil – pela verve de disciplina e seriedade, quase não se misturavam ao restante do grupo. Outra vantagem entre os catarinenses era o fato de falarem o italiano e o alemão. Diferencial importante em várias situações de risco e enfrentamento com o exército oponente.
Durante todo o tempo em que ficou na linha de frente, em Monte Castelo e regiões circunvizinhas, o medo se fez presente. Assistir a morte e tentar sobreviver deixou cicatrizes em todos os soldados. Entretanto, não tirou dos brasileiros o espírito de solidariedade e alegria.
Dividiam ração, roupas e cigarros com os moradores locais. Quando precisavam remover ou encaminhar prisioneiros de guerra – grupos de dez ou quinze soldados – isso era feito por apenas um ou dois febianos por conta da camaradagem e respeito ao outro. Também com estes repartiam suas rações.
Recebeu a notícia do final da guerra na cidade de Alexandria. Dali deveria retornar a Nápoles e posteriormente ao Brasil. Durante o tempo de espera faziam a “tocha”, ou seja, saiam do acampamento para passear clandestinos nos trens. Agostinho passou dez dias perambulando por Roma e muitos outros fizeram o mesmo em várias localidades da Itália.
Desmobilizados ainda em solo italiano, voltaram para o Brasil. Seu navio veio direto. Outro fez uma parada em Portugal, onde os tripulantes foram recebidos com festa pelos irmãos lusitanos. A mesma alegria da recepção em Recife e Rio de Janeiro.
Saíram de uma guerra para mergulharem em um pesadelo tão grande quanto. Sem emprego, considerados “loucos” pelos traumas adquiridos durante o conflito, não se encontravam na sociedade. O Exército Brasileiro não permitia a presença dos pracinhas em seus quartéis, sequer que falassem sobre a guerra. Suas famílias nem sempre tinham condições de recebê-los na carestia do pós-guerra. Perambularam...
Voltar para sua terra foi outro drama. Sem dinheiro, sem passe para o trem, Agostinho voltou por caridade. Não era mais um soldado brasileiro, tornara-se um pária, como milhares de outros.
Conseguiu emprego de guarda-fios graças ao bom relacionamento do irmão que trabalhava nos Correios. O governo federal fez um acordo com empresas estatais para absorver a mão de obra desses soldados. Em vão. Era necessário um cem número de estratagemas e recursos para fazer valer seus direitos. Muitos morreram sem consegui-lo.
Fez carreira dentro da empresa, de guarda-fios chegou a chefe dos transportes. Morou em várias localidades sulistas instalando linhas de telégrafos e retornando a Campo Grande aposentou-se após 39 anos de serviços prestados. No último dia 6 encerrou sua jornada neste plano sendo sepultado no Dia da Pátria.
* Maria Madalena Dib Mereb Greco (presidente do IHGMS, cadeira 34 - patrono: Guido Boggiani) e Eron Brum (associado correspondente do IHGMS).
EM MEMÓRIA
Autor: Heitor Freire - Eron Brum e Maria Madalena Mereb Greco