23/09/2020
O ofício do Historiador
Origem da ciência histórica – Heródoto é considerado um dos primeiros historiadores da humanidade. Nos meados do século V a.C, escreveu sobre a invasão persa na Grécia, as Guerras Médica. Ao fazê-lo, concebeu a história como um problema filosófico que pode revelar aspectos do comportamento humano.
O termo criado por ele “Historie”, significa literalmente, pesquisa. A essência do ofício daqueles que se dedicam ao estudo da História, a pesquisa, a tudo que se refere à produção humana.
Na mitologia grega, Zeus e Mnemósine tiveram 9 filhas, as musas que representam áreas distintas do conhecimento, dentre elas Clio, a musa da História. E assim, sob a égide de uma musa inspiradora ou não, os historiadores desempenham o relevante papel de investigar e esclarecer processos importantes no desenrolar da humanidade.
No século passado, em meados dos anos 20, o historiador Marc Bloch professava que a história não seria mais entendida como uma “ciência do passado”, uma vez que o passado não é objeto de ciência. Pelo contrário, para o autor era no jogo entre a importância do presente para a compreensão do passado e vice-versa. A história seria a ciência dos homens, ou melhor, dos homens no tempo.
Tem um provérbio árabe que diz assim: “ os homens se parecem mais com sua época do que com seus pais”... Parceiros, Marc Bloch e Lucien Febvre, fundadores da escola dos Annales (1929) postulavam que a “história era filha do seu tempo”. Uma postura crítica àqueles que definiam o passado como algo rígido, sem mudanças. Para essa Escola, o passado era uma estrutura em progresso.
A maioria dos historiadores brasileiros tem forte influência nessa Escola. Esses profissionais que se encarregam de estudar, pesquisar e analisar os acontecimentos do passado, sua relevância para a atual época. Esse trabalho investigativo, analítico e crítico são feitos através de resgate e compartilhamento de documentos pertencentes a diferentes períodos da história humana, assegurar sua autenticidade, relevância e o significado para a conexão dos fatos.
Cabe ainda ao historiador o planejamento, implantação e direção de pesquisas históricas e serviços de documentação e catalogação e, parecerem sobre temas históricos.
Para exercer a profissão de historiador é obrigatório portar o diploma de curso superior em História, em nível de graduação ou pós-graduação, em instituição reconhecida pelo Ministério da Educação (MEC), podendo ser nas modalidades de bacharelado e licenciatura, sendo a última necessária para ministrar aulas.
Comemorada em 19 de agosto, o Dia do Historiador foi implantado através da Lei 12.130/2009 em homenagem ao estadista, diplomata e escritor pernambucano, Joaquim Nabuco, já a profissão de Historiador foi aprovada em 18 de fevereiro de 2020, Lei 14.038, após anos de reinvindicações, desde 1968. A regulamentação para exercício da função segundo a Lei está:
I – magistério da disciplina de História nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, desde que seja cumprida a exigência da Lei n. 9.394, de 20/11/1996 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB quanto à obrigatoriedade da licenciatura;
II – organização, implantação e direção de serviços de pesquisa histórica;
III – planejamento, organização, implantação e direção de serviços de pesquisa histórica;
IV – assessoramento, organização, implantação e direção de serviços de documentação e informação histórica;
V – assessoramento voltado à avaliação e seleção de documentos para fins de preservação;
VI – elaboração de pereceres, relatórios, planos, projetos, laudos e trabalhos sobre temas históricos.
O Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul – IHGMS, conta com um número expressivo de associados na área de História, o atual presidente, Professor Doutor Valmir Batista Correa e a Professora Doutora, Lúcia Salsa Correa, presidente do Conselho Editorial, que assinam o artigo abaixo e dão o testemunho da satisfação e comprometimento com sua profissão.
O TEMPO E A HISTÓRIA
Valmir Batista Corrêa
Quando eu fiz o curso Científico na cidade de Assis, em São Paulo, a minha professora de Literatura incumbiu toda a classe de ler livros de livre escolha na biblioteca da escola. Um colega falou-me sobre um livro que parecia uma história de faroeste. Comecei a lê-lo e fiquei fascinado. Era A retirada da Laguna, do Visconde de Taunay. Ainda nesta escola li o livro Um certo capitão Rodrigo, de Érico Veríssimo e muitos outros livros de literatura portuguesa.
A vida não era fácil e arrumei um emprego em uma livraria. Enquanto eu vendia livros, tive a oportunidade ler praticamente todo o estoque da loja, em especial os livros de história. Transformei-me em um fanático devorador de livros. A partir daí, o meu caminho foi sentar nas cadeiras do curso de História na PUC/SP.
Na graduação, que também era bacharelado (embora a profissão ainda não era reconhecida) tive um professor que se tornou meu grande amigo e orientador. Foi com ele que me afundei ainda mais no mundo dos livros. Depois de formado, fui dar aulas de História em ginásios e cursos do antigo segundo grau em São Paulo. Um dia, meu velho mestre, Maurício Tragtemberg, telefonou-me e perguntou se eu queria dar aulas num curso superior de História, recém criado em Corumbá, no velho Mato Grosso. Perguntei a ele aonde era esse lugar. Ele simplesmente falou – Não sei, procure num mapa.
Assim comecei a minha vida de professor universitário e pesquisador de História no Centro Pedagógico de Corumbá, depois, Centro Universitário. Foi um tempo de longa data. Hoje estou aposentado em Campo Grande, mas minha paixão continua a ser ler, pesquisar, escrever e publicar livros.
MEU AMOR PELA HISTÓRIA
Lucia Salsa Corrêa
Meu interesse pela História me foi iniciado por meu pai. Ele contava histórias de aventuras e eu as ouvia encantada. Havia em minha casa duas estantes de livros bem recheadas com literatura, e algumas coleções: a História Geral de Cesare Cantú, História do Brasil de Adolfo de Varnhagem e muitos livros de Emilio Salgari que muito mais tarde inspirariam Spielberg em seus filmes mais famosos.
Meu pai lia muito e me contava com o maior entusiasmo as histórias desses livros. Tive professores que me influenciaram no ginásio e decidi matricular-me no curso Clássico do Colégio Estadual de São Paulo, que naquela época preparava os jovens para cursar Direito e outras áreas das Humanidades. Foi um privilégio estudar nesta escola que até hoje é uma referência de escola pública. Além disso tive o apoio incondicional de meus pais e de meu tio querido, o Zéry.
Para ingressar na faculdade, um pouco insegura, optei pelo cursinho Equipe Vestibulares, no ano emblemático de 1968. Foi um momento decisivo na vida do país e na minha vida, quando estudei com professores de História que se tornaram mais tarde celebridades no meio acadêmico. Nessa ocasião, escolhi o meu lado.
Ingressei na PUC da Rua Monte Alegre, no bairro das Perdizes em São Paulo e onde conheci um jovem como eu, amante de livros, e meu engajamento foi tanto que me casei com esse futuro historiador. Quando ainda éramos namorados, ele foi para Mato Grosso para onde eu também fui depois de formada. Em Corumbá, do outro lado do meu mundo que era São Paulo, completei minha carreira de professora universitária e de historiadora. Hoje, quando a profissão de historiador foi finalmente reconhecida, sinto que acertei ao escolher o caminho e o sentido de minha vida, alimentando a paixão pela História, lendo e escrevendo como ofício e por prazer.
CAMPO GRANDE DE VOLTA PARA O FUTURO
O que se pode esperar para o futuro da cidade de Campo Grande, a capital do estado de Mato Grosso do Sul?
A cidade se apresenta como de porte médio, próxima de um milhão de habitantes, lugar aparentemente aprazível para se viver, e o que mais? Seu solo é fértil, seu clima ameno, porém predominando o calor, com abundantes águas de córregos, rios e lagoas. Tem tudo o que uma capital de respeito necessita, mas conserva uns ares de provincianismo que talvez seja o seu maior atrativo. Conserva também cicatrizes do seu passado violento.
O que a define? O que de fato explica e representa a urbe nascida há quase duas centenas de anos, jovem portanto, fincada nos extensos Campos da Vacaria, como antigamente chamava-se este território imenso e remoto de sertões brasileiros e de fronteira.
A história deste lugar e de sua gente é a chave para a compreensão de sua identidade e permite que se vislumbre as suas possibilidades futuras. Isto porque as cidades podem parecer iguais, mas suas histórias não o são. Como tudo começou neste lugar pode explicar como Campo Grande poderá vir a ser uma alternativa de qualidade de vida urbana em pouco tempo.
Estes extensos campos, plenos de generosa natureza que existiram em estado bruto, separando dois impérios ibéricos na América do Sul, não eram vazios antes de aventureiros e sertanistas os percorrerem. Sociedades pré-colombianas e indígenas estavam presentes neste território, mas foram ignorados pelos conquistadores vindos de outras terras. Nas primeiras décadas do século XIX, formaram-se os pioneiros assentamentos de “novos” conquistadores, agora provenientes de outras regiões brasileiras, em busca de terras para ocupar e explorar seus abundantes recursos naturais, que no entanto fixaram-se de forma isolada, em núcleos familiares e abrindo fazendas, sem ensejar fundar arraiais. Viveu-se, pois, um insulamento de gente, reunidos por laços de parentesco, por exemplo.
Campo Grande teria nascido assim timidamente, sem o burburinho das zonas de mineração onde a riqueza do ouro e de pedras preciosas atraiu muita gente de toda parte, como aconteceu com a Cuiabá do Mato Grosso. Entretanto, não logrou paz e prosperidade perenes por que uma grande guerra aconteceu e adiou o seu futuro promissor naquela época.
Passado o tempo do conflito, quando este território quase se destinou a ser uma província paraguaia, projeto derrotado na guerra da Tríplice Aliança, a povoação se reestabeleceu sob uma nova função de pouso, comunicação e comércio, como ponto de convergência de gente que circulava de norte a sul do Mato Grosso e das regiões platinas. Vislumbrou-se no final do século XIX um futuro promissor e o crescimento de um importante polo mercantil de abastecimento interno e de exportação de gado bovino e matérias primas provenientes dos ervais nativos da nossa extensa fronteira. Mas, um conjunto de fatores desfavoráveis, e sobretudo a sua condição de fronteira livre e aberta sem a presença ostensiva do
aparato do estado, fez de Campo Grande um povoado turbulento, onde se ouvia cotidianamente os sons de tiroteios e onde imperou por muito tempo a lei do “44”, o crime recorrente e a impunidade.
A partir de então, a vila viveu um tempo de efervescência e crescimento, assumindo novo papel preponderante em todo o sul mato-grossense. O futuro vislumbrava uma nova era de riqueza, de protagonismo político regional e de paz. Mas, as turbulências do passado permaneceram retardando seu desenvolvimento humano. Esse foi o tempo do domínio em Mato Grosso dos coronéis grandes proprietários e empresários e dos bandidos que circulavam livremente por todos os lados da faixa fronteiriça.
Reflexos de crises e rebeliões regionais e nacionais se fizeram sentir na comunidade campo-grandense, tais como as agitações promovidas por revoltas de militares e de chefes políticos revoltosos como Bento Xavier no início do século XX. Sofreram seus moradores com a revolução de Izidoro Dias Lopes e a passagem da Coluna Prestes (1924 e 1925), com as revoluções de 1930, 32 e 34 e, sobretudo, vivenciaram o descaso dos sequenciais governos de Mato Grosso que negligenciavam os interesses dos mato-grossenses do sul e da fronteira. Assim, nasceu um forte impulso de independência que, aos poucos, apontando para o futuro de liderança de Campo Grande, ensejou a criação de um novo estado.
E para corrigir o percurso mais remoto de violência e desregramento de parte de seus habitantes, como foi um lugar de passagem por onde convergia gente de toda espécie, aventureiros desregrados e fugitivos da justiça e da lei, além da política externa representada pela rivalidade entre as nações do Prata e o Brasil, foram construídos os grandes quartéis, foi criada a sede da Circunscrição Militar na emergente cidade e os governos que se seguiram após 1920 e 1930, federal e estadual, voltaram suas vistas e recursos para amparar e proteger a imensa e flutuante fronteira.
Campo Grande seguiu crescendo como eixo catalizador do movimento mercantil de exportação e importação com a chegada do caminho de ferro, quando em 1914 se deu a ligação dos trilhos da Noroeste do Brasil como parte de um grande projeto de vinculação dos sertões do Centro Oeste aos centros mais desenvolvidos. Abriu-se uma nova porta para tempos vindouros até a realização de um sonho dos campo-grandenses em 1979 com a instalação de uma capital de um novo estado brasileiro.
Depois de elevar-se à categoria de cidade e receber imigrantes de muitas partes do Brasil e do resto do mundo, constituiu-se um caldeirão de povos, raças e culturas que produziu uma sociedade multicultural e apta a enfrentar os desafios do século XXI, e esta é uma das maiores vantagens que Campo Grande tem em relação a outras grandes cidades brasileiras.
Mas outros desafios se apresentam no tempo presente, com a repercussão das crises desse novo século, incluindo novas formas de violência que nos ameaçam. Retornar ao passado, com uma máquina do tempo para ver com os próprios olhos as crises e a violência reinante naquele incipiente vilarejo de fronteira é pura fantasia. Necessário e possível é mergulhar na história destes sertões do sul de Mato Grosso, através dos livros, dos jornais e outros documentos ainda existentes para aprofundar
a compreensão dos acontecimentos mais críticos e específicos desta região, sem perder de vista de que se trata de uma região de fronteira. Afinal, uma fronteira é sempre o lugar da liberdade e do novo, atraente para quem tem sede de aventura e de poder transformador da sociedade humana. No outro lado dessa moeda, a fronteira paga um alto preço da violência e das contradições no embate entre “civilização” e “barbárie”, mas forja homens e mulheres de fibra, capazes de dar prosseguimento ao trabalho e à luta dos pioneiros para produzir um lugar onde poderá haver uma sociedade mais justa, solidária e exemplo de vida sustentável. E só assim, Campo Grande terá a capacidade de reabrir as portas do tempo.
Campo Grande, MS, agosto de 2020
Valmir Batista Corrêa
Presidente do IHGMS
Lucia Salsa Corrêa
Autor: Valmir Batista Correa/ Lúcia Salsa Correa