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08/02/2021

Mulheres Cangaceiras: Anésia Cauaçu

 

Mulheres Cangaceiras: Anésia Cauaçu

 

Samuel Medeiros*

 

Praticamente desconhecida no Sul, Anésia Cauaçu é personagem lendária entre os papéis femininos que permeiam o imaginário coletivo do cangaço brasileiro, formando um painel rico em detalhes e a valorização, embora por linhas tortas, da mulher como ser e não como objeto.

Lutadoras imbatíveis?

A história nacional contempla as mulheres no cangaço com acentuada curiosidade, levando-se em conta a comparação entre a fragilidade natural feminina e o ambiente violento e hostil dos grupos que elas acompanhavam. A primeira percepção é a de que foram lutadoras imbatíveis nos ataques promovidos pelos bandos, mas isso não se constituiu regra. Elas surgiram junto aos bandoleiros que assolavam principalmente o Nordeste entre as décadas de 1920 e 1930 e cultiva-se a ideia de que foram ousadas, companheiras fortes e lutadoras junto aos jagunços, mas não foi bem assim. A primeira mulher que surge no lendário popular é Maria Bonita. Embora Lampião tenha iniciado suas atrocidades após 1922, ela só aparece no cenário após 1930, já na Bahia, e sua notoriedade foi mais pela beleza, personalidade forte, e por ser a mulher do rei do cangaço.

A ala feminina no cangaço, pelo menos ao que se vê na literatura, mostra-se menos expressiva do que a memória oral é capaz. Pelo que se sabe elas não participavam dos combates, atiravam ou andavam armadas “até os dentes”; é como o imaginário popular gostaria que fossem, para justificar o papel feminino num contexto de extrema violência. Uma das únicas “vantagens”, é que a motivação para entrada no bando tornava-se uma forma de protesto contra a família que as oprimia. No cangaço, pelo menos podiam adotar atitudes libertárias em relação aos costumes como se pintar, usar saias mais curtas e justas, e não ter a obrigação de lavar, cozinhar, costurar e bordar. Isto era atribuição dos homens. Apesar da postura liberal que adotavam, tolerada, quando se aliavam a algum homem do cangaço eram oprimidas pelo machismo; a infidelidade feminina punia-se com a morte. Como entre eles rondava muita superstição, alguns acreditavam possuir o “corpo fechado”, sempre escapariam das emboscadas e, se fizessem sexo antes de um combate, estariam “sujos” e perderiam parte da imunidade.

 

Antes de Lampião

A história mostra que a Bahia foi o Estado que mais teve representantes femininas nessa marginalidade dominada pelos homens. E é nesse mesmo Estado, e anteriormente a Lampião, em 1916, que surge uma personagem diferente das companheiras que acompanhavam os bandos: Anésia Cauaçu. Ela tem seu protagonismo na cidade de Jequié e arredores, em um cenário sem lei quando se fazia justiça pelas próprias mãos. Persistia a lei do mais forte, e quem não detivesse armas para sua defesa ou vingança, tornava-se fatalmente vítima, e não teria a quem recorrer com um Poder Público incipiente e ocasional no sertão. Duas famílias da região da cidade de Ituaçu se rivalizavam: os Silva, denominados “rabudos” e os Gondins, os “mocós”. O major Zezinho dos Laços (um dos líderes dos “rabudos”) exige que Augusto Cauaçu acompanhe seu grupo de jagunços em uma emboscada contra a família Gondin. Este se recusa, e é assassinado a mando de Zezinho. Então a família Cauaçu se une para o processo de vingança de seu patriarca, executando primeiramente o mandante da morte de Augusto. Concomitantemente, vários membros dos Cauaçus são assassinados.

Com as repetidas mortes de familiares, Anésia assumiu o protagonismo da luta por vingança e forma, com um grupo de cangaceiros, um movimento armado intitulado “Conflagração Sertaneja”. O governo da Bahia organizou um comando para desbaratar o bando, mas foram tocaiados no legítimo estilo de guerrilha quando os Cauaçus se dividiam nos vales pedregosos e áridos do sertão escondendo-se em grupos para tocaiar a força policial que teve de recuar depois de sucessivas baixas. Após obtidos reforços, os volantes abusavam da população por entender que os moradores estavam atocaiando os Cauaçus comandados por uma mulher: trucidavam crianças, enforcavam autoridades, violavam as mulheres.

Anésia então aparece com tons de encarnação da mulher forte do Nordeste. Desfruta de quase igualdade com os homens, fumando em público, tomando cachaça, conhecendo os golpes de capoeira e, principalmente, manuseando com desenvoltura as armas de fogo. A história registra um feito simbólico: sentindo-se acuada ela atirou a uma distância de cem metros e decepou apenas o dedo de um sargento. Enquanto ele gritava e os soldados foram atendê-lo, ela escapuliu. Isso lhe deu mais um aspecto de notoriedade, de exímia atiradora. Essa façanha foi registrada nos jornais da época e nasceu aí o mito da cangaceira praticamente imbatível.

Ela foi a primeira mulher na região a usar calças compridas e trocar o silhão pela sela comum, e era seguida de lendas das mais variadas. Uma delas, é que se “invultava”, ou simplesmente se tornava em outro ser, invisível. Certa vez, fugindo de soldados, saltou do cavalo e se escondeu numa gruta. Os soldados não viram quando ela pulou, e simplesmente acreditaram que sumira no ar, pois o cavalo continuou andando sozinho. Vasculharam as redondezas e não a acharam, motivo para crer que se “invultava”. Ela foi uma personagem lendária praticamente desconhecida entre os papéis femininos que permeiam o imaginário coletivo do cangaço brasileiro, formando um painel rico em detalhes e a valorização, embora por linhas tortas, da mulher como ser e não como objeto.

Pesquisando o universo feminino no cangaço, é mais comum saber que Dadá, mulher de Corisco, o “Diabo Loiro”, um dos bandoleiros mais célebres do bando de Lampião, manuseava armas com precisão e chefiou emboscadas. Ele a ensinou na prática de armas. Mas, ainda falando no cenário do Nordeste e, principalmente na Bahia anteriormente às décadas de 1920 e 1930, é Anésia a protagonista de maiores atrocidades, tudo em nome da “justiça”, a sua justiça. Anésia Cauaçu é descrita no romance de Domingos Ailton, baiano também de Jequié, que não só reporta ao cenário em que atuou, como enriquece sua história com esmerados recursos da ficção aliados à pesquisa histórica. Recentemente, o tema voltou com um novo livro do escritor Wilson Midlej, também de Jequié, fornecendo mais dados documentais sobre Anésia, trazendo novos elementos figurativos dessa personagem intrigante na historiografia brasileira.

 

(*) Samuel Xavier Medeiros é advogado e escritor. Membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras e da União Brasileira de Escritores de MS. Associado efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS (cadeira n. 6 - patrono: Manoel da Costa Lima).

Autor: Samuel Medeiros

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