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02/02/2021

Fogo na mata e a história ambiental.

Fogo na mata e a história ambiental

Lúcia Salsa Corrêa-IHGMS


    O historiador Warren Dean, autor de diversos estudos sobre a história do Brasil, aproximou-se de uma linha de pesquisa dentre os historiadores norte-americanos que se dispuseram a estudar furacões, florestas e demais paisagens naturais relacionadas à ocupação e ao desenvolvimento humano no mundo.. Diferenciou-se dos demais historiadores conhecidos como brasilianists, que passaram a estudar e a publicar temas relacionados ao Brasil desde os anos de 1970, pelo seu engajamento pessoal e forte ligação com a história brasileira, inovando na abordagem e nas análises de seus estudos.  Seu cardápio temático incluiu mudanças na sociedade até os anos de 1940, a sociedade agrária e a industrial, o trabalho escravo e o trabalho livre, em síntese, capital, terra e trabalho, focando a região de São Paulo. 
Em 1998 Dean publicou um livro sob o título A ferro e fogo – A História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira, pela editora Companhia das Letras, apresentando uma nova linha de estudos que relacionam história e ambiente, criando um modelo que exige um aprofundamento do conhecimento do passado histórico da sociedade e da exploração dos seus recursos naturais não renováveis. Dean construiu, com este e outros mais estudos de história ambiental, a matriz histórica que se faz muito apropriada nos dias de hoje para compreender a voraz apropriação humana da Amazônia, do grande cerrado do Planalto Central e do Pantanal e a ocorrência de grandes e incontroláveis incêndios.
Muito embora seu foco seja a Mata Atlântica, devastada desde o período colonial, seu estudo ajuda a explicar como os assentamentos humanos pelo interior do país e a abertura das fronteiras internas pela expansão da agricultura e da pecuária provocaram uma gigantesca destruição da exuberante cobertura florestal do Brasil que, apesar de tudo, ainda resiste, mas não se sabe até quando.
A história de Mato Grosso do Sul é plena de exemplos de ocupação predatória e de exploração extensiva de seus recursos naturais, permitindo a abordagem oportuna de seu desenvolvimento histórico e da relação ente homem e ambiente natural. A aparente abundância de ervais nativos, de madeiras de lei,  de matas de quebracho, de pastagens disponíveis com a formação de “barreiros” (fornecedores naturais de sal) que complementavam a alimentação de parte  da fauna nativa e do gado bovino, favoreceram uma economia baseada nas mais primitivas tecnologias de exploração econômica: o fogo, o corte à machado indiscriminado de árvores, a “coivara” para as lavouras de subsistência, tudo derivando do uso abusivo e devastador do cerrado e do Pantanal sul-mato-grossenses, causando também assoreamento dos rios e extinção de manaciais. As embarcações a vapor que adentravam o rio Paraguai, sobretudo a partir de 1870, aportavam em qualquer ponto acessível nas margens do rio para abastecer de lenha suas caldeiras, não distinguindo madeiras de lei de outras mais, desmatando a mata ciliar. O mesmo ocorreu com a estrada de ferro, percorrida pelas locomotivas conhecidas como Marias Fumaças.  
No caso da erva-mate, a exploração foi extensiva desde os anos finais do século XIX, não só da famosa Companhia Mate Laranjeira, mas também por ervateiros clandestinos e contrabandistas. Em 1885 o coletor de impostos na zona dos ervais, Alferes Luiz Perrot, relatou que a ganância dos ervateiros para produzir a maior quantidade possível de folhas cortava toda a ramagem até os brotos recentes. O coletor previu uma breve aniquilação desses ervais. Em 1896, ervateiros independentes atearam fogo nos territórios concedidos a grande Cia. Mate Laranjeira, causando incêndios criminosos. 
Durante as lutas políticas entre os coronéis pelo poder e por terras no período republicano, ao tempo dos mais famosos líderes rebeldes Bento Xavier e Mascarenhas de Moraes, o fogo foi comumente utilizado como arma da mesma forma ocorrida na luta com os paraguaios no século anterior.
Além do mais, o costume de preparar os campos de pastagens tanto no Pantanal quanto na antiga Vacaria pelos pecuaristas foi registrado desde o princípio da formação de fazendas, com o uso do fogo e do machado. A pratica era recorrente e motivou o capitão responsável pela Colônia Militar de Dourados a publicar um edital em 31 de outubro de 1888, proibindo a derrubada indiscriminada das matas locais. Havia que ter manejo apropriado e sustentável desde aquela época.
Não é necessário relatar o que está acontecendo no momento e a imprensa e redes sociais se encarregam de divulgar a tragédia que assola o Pantanal. Há, na verdade, um histórico de exploração do território de Mato Grosso do Sul de mais de 200 anos, mas nada justifica as queimadas irresponsáveis que estão dizimando a cadeia vital da natureza. Essa criminosa devastação, na verdade, decorre dos fatos políticos e econômicos que agravam o problemas em vez de resolve-los, e deve-se recorrer aos estudos da história ambiental que proporcionam a intima e profícua relação dos campos de saber das ciências humanas e das biológicas  para entender como  a penetração das relações sociais capitalistas e os assentamentos urbanos crescentes, sem saneamento básico e sem nenhum planejamento, são os maiores gargalos do desenvolvimento humano sustentável, aliados ao aumento da pobreza em todo o país e as inúmeras atividades de exploração clandestina e criminosa (como os garimpos, por exemplo). 
A complexidade destes problemas é gigante, mas uma coisa pode ser feita de imediato: apagar o fogo nas matas e nos campos e reforçar as políticas de conservação ambiental, além de exigir que o governo assuma a responsabilidade de preservar a vida da natureza e da humanidade.       

    

Autor: Lúcia Salsa Corrêa

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