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19/05/2021

Auxiliadora: história e memória afetiva.

Maio é mês de Nossa Senhora Auxiliadora e em 2021 o Colégio Auxiliadora de Campo Grande completa 95 anos do início de suas atividades. Neste artigo, a antropóloga Yara Penteado, faz um breve relato do início da instituição e evoca lembranças do internato e do cancioneiro que marcou a memória afetiva de gerações.

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95 ANOS

 

Auxiliadora: história e memória afetiva

Yara Penteado*

 

O colégio

As filhas de Maria Auxiliadora têm disciplina no registro cotidiano da História. As “crônicas” são valiosos documentos e nelas nos apoiamos para mostrar o nascimento deste colégio que em 2021 completa 95 anos. Esses relatos contam a história da congregação desde sua fundação, com Maria Domingas Mazzarello – Madre Mazzarello – em Mornese, no Piemonte, Itália, quando corria o ano de 1837.

Em Campo Grande, vejamos a crônica que relata a chegada das salesianas: “Em 22 de fevereiro, do ano do Senhor – 1926 – ocupando a cátedra de São Pedro, S.S. o Papa Pio XI; governando a diocese de Corumbá, S.E. Mons. José Maurício Della Rocha; sendo presidente do Estado de Mato Grosso (Brasil) o egrégio doutor Mário Correa da Costa; tendo como superiora geral do Instituto das F.M.A. a Madre Luiza Vaschette, chegaram a esta promissora cidade de Campo Grande, as quatro primeiras filhas de Maria Auxiliadora: Irmã Maria Oggero – na função de diretora; Ir. Norina Obliqui, Ir. Hermínia Marques e Ir. Maria Gioga, acompanhadas pela própria Inspetora Regional, Ir. Francisca Lang, para iniciarem a obra a elas confiada. Devido terem chegado à meia-noite – zero hora – encontravam-se na estação ferroviária, apenas um confratello salesiano Pe. João Crippa e o sr. Adalberto Barreto, que as acompanharam até a residência do Senhor Bispo que, naquela ocasião, estava ausente. Nesse local as irmãs passaram o dia 23 de fevereiro”.

O antigo sonho de fundar um colégio aqui no sul do Estado começava a se tornar realidade. Antes, já havia sido formada uma comissão de senhoras da sociedade local que vinha trabalhando nesse sentido: rifas, alegres barraquinhas e almoços, com os necessários leilões e tudo o mais que valesse para angariar fundos. Essa comissão era presidida por Dorinha de Figueiredo (esposa do prefeito, dr. Arnaldo Estevão de Figueiredo); Beatriz Chaves (esposa do juiz de Direito, dr. Laurentino Chaves); Antônia Correa da Costa (Dona Neta); Blanche dos Santos Pereira e Thomazia Rondon.

Dona Neta cedeu a primeira casa para o funcionamento do colégio, na Rua 26 de Agosto. A instalação da escola foi em 24 de fevereiro de 1926. Divulgada pelo jornal local, foi evento importante que marcou a cidade conforme registrado nas crônicas: “Dia 24 – às 8 horas, missa de Ação de Graças pela chegada das irmãs salesianas. Às 9 horas, reunião na casa que servirá de colégio, onde se fez uma homenagem às irmãs salesianas, com os seguintes números: 1o – saudação, em nome da juventude feminina da cidade, pela inteligente jovem Emilse Ferreira; 2o – em nome das jovens, saudará as irmãs, a senhorita Clotilde Rondon; 3o – em nome das Filhas de Maria, a senhorita Oliva Enciso; 4o – pela associação dos ex-alunos salesianos, falará o doutor Adalberto Barreto. Encerrará a homenagem às irmãs salesianas o revmo. Padre João Crippa, pároco salesiano, congratulando-se com a população de Campo Grande”.

No dia 25 de fevereiro, as alunas começaram a ser matriculadas no curso primário, externato, no total de 143. Aos poucos, a comissão foi provendo a escola com utensílios, gêneros e tudo mais para seu funcionamento. Já no dia 28 teve início o primeiro Oratório, forte marca salesiana trazida de Dom Bosco, e suas atividades com crianças e jovens nas mais variadas modalidades. As aulas começaram em 1º de Março. O colégio conquistava a cidade e fazia fama pelo interior, de onde eram recrutadas alunas para o internato.

E foram chegando reforços para os quadros das irmãs... E já nasciam vocações para a messe: uma aluna de Rio Brilhante – Áurea Brito –  era recebida como postulante.

Em 1927 os números cresceram: 250 externas e 27 internas. No Oratório, quase 100. Em 1929, novo marco histórico: o início da construção da sede na rua Pedro Celestino. O projeto era do engenheiro Joaquim Teodoro de Faria em parceria com o arquiteto alemão Frederico Urlass.

Em 1931 o colégio começou a funcionar nas novas instalações com o primeiro pavilhão, destinado às aulas. No total, a obra só seria finalizada em 1950, em seu gigantesco complexo, que se mantém até hoje com alguns acréscimos. Em 1932, fecho de ouro com a formatura da primeira turma do curso Comercial. Em 1933, a formatura das alunas do curso Normal. Ainda nesse ano, outra grande iniciativa: a criação da União das Ex-alunas. Sua primeira delegada foi Ir. Bartira Gardès, que trabalhou por longos anos como agente aglutinadora, até a sua morte.

As ex-alunas se constituem em importante fonte complementar de informações sobre a história do Auxiliadora. Cito aqui Célia Barbosa Rodrigues, Nerzita Carvalho Sayde, Clotilde Monteiro da Silva, Basti de Souza. Entre outras, há que se destacar o trabalho na presidência, por muitos anos, de Rosita Corrêa Leite, incansável nas convocações e nos trabalhos para o fortalecimento da Associação. Os registros sistemáticos de suas reuniões e, atualmente, o uso das redes sociais, com presença constante no Facebook, em trocas de mensagens, são fatores aglutinadores entre as ex-alunas, mantendo viva a presença do colégio.

 

O internato

Era muito comum as famílias do interior mandarem seus filhos para o internato. Eram instituições preparadas logisticamente para tal finalidade. A par disso, havia um clima de confiança no trabalho dos dirigentes e aqui, particularmente, falo das irmãs salesianas.  

Algumas considerações sobre o caráter social dos internatos, em breve esforço teórico, contribuem para a compreensão dessas instituições na sociedade mais ampla. Caracterizados pela reclusão, diferentemente dos presídios, os internatos mantém os indivíduos em confinamento apenas por períodos que correspondem aos ciclos escolares. No caso dos destinados a crianças e adolescentes a finalidade era o estudo e a formação social e religiosa. Os filhos não eram reclusos como punição muito embora a ameaça “te mando para o internato” soasse como possibilidade de castigo.

A disciplina, a ordem, a obediência são fatores considerados primordiais na formação dos indivíduos, modelando o caráter e preparando-os para a vida. Nos internatos as atividades humanas eram realizadas em esferas complementares, entre elas, dormir, brincar, trabalhar, estudar, entre tantas outras, como reforça  o antropólogo E. Goffman: “O aspecto formal das instituições totais pode ser descrito com a ruptura das barreiras que comumente separam essas esferas da vida [...] tudo é realizado no mesmo local, sob uma única autoridade. Em segundo lugar, cada fase da vida diária do participante é realizada na companhia de um grupo relativamente grande de outras,  todas elas afastadas da mesma forma e obrigadas a fazer as mesmas coisas em conjunto, em terceiro lugar, todas as atividades diárias são rigorosamente estabelecidas e em horários [...]”.

Tudo isso com o contraponto das sanções e vigilâncias. A ausência da família e o distanciamento físico, tornavam o internato, por um lado um castigo, por outro, era a oportunidade de se proporcionar uma educação de qualidade, por vezes com sacrifícios para a família de origem.

O internato era a nossa vida, e aqui me incorporo. Nele vivíamos e sonhávamos, brincávamos os folguedos, devaneávamos as fantasias de crianças e adolescentes, tínhamos nossa rotina diária, com horários rígidos e normas, que levaríamos pela vida.

 

O cancioneiro

Nossa rotina diária era regida por horários que se repetiam pelos dias. Nos recreios nossa fantasia e nossos corpos eram livres em voos de jogos infantis e, após as refeições, com cantigas de roda em suaves embalos do cancioneiro popular e volteios ritmados.

A memória afetiva traz o registro de um cancioneiro rico que, infelizmente, vai se perdendo. A título de exemplo, lembro uma cantiga de roda, provavelmente do século XIX, que minha mãe – Carmen Geleilate – aprendeu aos 7 anos no internato do Auxiliadora, nos idos de 1929. Quando fui interna, em 1954, já não era mais cantada. Vale a anotação: “Onde mora Maria Conceta /  língua de prata / e nariz de lanceta. / Aqui moro, aqui estou / vai dizendo o que quer. / Senhor rei mandou dizer/  pra mandar uma de vossas filhas. / Minha filha eu não mando / nem por ouro nem por prata / nem por sangue da barata. / Essa sim, essa não / essa me parece bem / essa cheira o alecrim / essa de rosa também / palmatória de marfim / para o mestre castigar / senhor rei mandou lhe dar / uma agulha e um dedal”.

Cantávamos para serras longínquas ou para mares ainda não conhecidos nem navegados por barquinhos: “Prateia a serra tudo prateia / ó luar branco de minha aldeia...” Eram evoluções dolentes, tristes, como a saudade. Braços entrecruzados no embalo suave das cantigas ancestrais, plangentes, ainda soam. Algumas delas oriundas de antigos cancioneiros medievais, soltavam a imaginação, atualizando festivais e saltimbancos, em ritos coletivos, que celebravam a primavera: “Desperta no bosque / gentil primavera...” As coreografias também carregavam traços de minuetos, às vezes com palavras afrancesadas: “de marré, dessus...”

Tudo isso nos reporta à riqueza desse imaginário popular que não resistiu ao tempo de novos repertórios e de origem que empobrece a fantasia. Cada vez mais substituídos pela TV, onipresente, faz perder a imaginação e massifica os conteúdos pré-fabricados. A rapidez da evolução dos meios de comunicação e as agilidades do mundo moderno, rapidamente substituíram esse rico estoque por linguagens mais econômicas e pobres em simbolismos, mais digitais e menos cerebrais.

Esses fragmentos de registros são quase uma evocação de um tempo feliz que passei no internato do Colégio Nossa Senhora Auxiliadora. Nele muito aprendi e ainda o carrego comigo, em ensinamentos e belas lembranças. Termino com uma alegre saudação cantada: “Bom dia, vossa senhoria...” 

 

* Yara Penteado é antropóloga; autora do livro “Auxiliadora: Setenta anos”; associada emérita do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul.

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Autor: Yara Penteado

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