12/04/2021
DE GOLPES E DE MARCHAS
Vi a postagem de um convite para a Marcha da Família Cristã pela Liberdade, convocada para o dia 11 de abril de 2021. O nome do evento, quase idêntico a outro, acontecido no dia 19 de março de 1964, em São Paulo, desencadeou a inevitável associação.
Sou testemunha ocular da Marcha da Família com Deus pela Liberdade; dela participei, embora por acaso. Fora com minha mãe ao Mappin comprar um presente de casamento. A previsão era eu almoçar por lá e depois ir para a aula. Mas, por volta do meio-dia, corre o zum-zum-zum de que seria ponto facultativo a partir das 15:00h. Então, decidi assistir a uma fita em cartaz no Cine Coral, dirigida por Vittorio De Sica e estrelada por Sophia Loren e Marcello Mastroiani: Iero, Oggi e Domani.
Subi a Rua Sete de Abril, o cinema se encontrava fechado. Segui para a Praça da República. Havia alguma movimentação diferente; lá, o República, Marabá e Ipiranga também estavam cerrados. Fui para a Avenida São João e o Metro, Ritz, Olido, Art Palácio, Paissandu e Marrocos não tinham sido abertos.
Voltei para a Praça da República. Agora o burburinho tinha crescido. Além da banda da Guarda Civil de São Paulo e muitos policiais, eram numerosas as senhoras elegantes em grupos, com muitas joias (fosse hoje, meu Deus!), várias delas portando terços de prata, cristal e outros de materiais vistosos. Pertenciam à Liga das Senhoras Católicas, à Associação Cristã Feminina e a outras entidades de mulheres ligadas a igrejas.
Às 15:00h em ponto todo o comércio cerrou as portas. Serviços idem. Repartições públicas estaduais e municipais também. Paralelamente, o transporte coletivo deixou de circular. Os terminais das Praças da República, Ramos de Azevedo, Patriarca, Correio, Largo do Paissandu, Anhangabaú, Parque D. Pedro, Praças da Sé, Clóvis Bevilacqua e João Mendes, sem um ônibus ou bonde sequer. Os trabalhadores dispensados do trabalho e impedidos de retornar a suas casas. Nem tinham como fazer hora em lugar algum. Nada aberto. As pessoas deviam ficar pelas ruas.
Como povo chama povo, logo que a banda se postou na Rua Barão de Itapetininga tocando dobrados cívicos, seguida pelo cortejo das ricas senhoras, muitos curiosos foram atrás. Cada vez mais gente atraída por aquela inaudita procissão. Eu ali, querendo ver o que ia acontecer. Cruzamos o Viaduto do Chá e entramos na Rua Direita, em direção à Praça da Sé. Lá, muita gente à espera de coletivos que não chegaram. Diante da catedral um enorme palanque. E uma discurseira danada. Lembro-me de Dulce Salles Cunha Braga e do poeta Paulo Bonfim, conclamando o povo contra a ameaça comunista.
Quem vir fotos ou filmes da Praça da Sé apinhada da gente saiba que não se trata de montagem, as pessoas estavam lá sim. A maioria de bobeira, como eu. Soube-se depois que a CIA teria dado uma mão para os organizadores. Realmente, foi um evento competentemente planejado e executado. Era uma resposta ao Comício da Central, ocorrido no dia 13 de março, no Rio de Janeiro, em apoio ao governo João Goulart, também com enorme público; segundo seus opositores, com funcionários federais obrigados a comparecer, além de “enlatados” trazidos dos subúrbios.
A Marcha da Família com Deus pela Liberdade foi um acontecimento estridente, largamente noticiado pela mídia adesista, preparando os espíritos para o golpe civil-militar já engendrado e anunciado de 31 de março para 1º de abril de 1964.
Pretender reeditar aquela manifestação política – pseudo religiosa – além de anacrônico é descontextualizado, não há golpe no radar. A Guerra Fria teve fim, a ordem internacional mudou muito desde então, os interesses são outros; impossível seus promotores contarem com apoio externo para garantir êxito semelhante. Ainda que as denominações evangélicas tenham crescido muitíssimo, em matéria de golpes e de marchas, o buraco é mais embaixo.
Paulo Cabral
Sociólogo e professor
Autor: Paulo Eduardo Cabral