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18/11/2021

Tempos idos da Esperança

Porto Esperança surgiu depois da Guerra do Paraguai (1864-1870) e se transformou em importante ponto de transbordo com a chegada da ferrovia Noroeste do Brasil na década de 1910. Era lá que os passageiros e as mercadorias que vinham no trem passavam para navios que seguiam para Corumbá e Cuiabá. Com a construção da Ponte Eurico Gaspar Dutra e posterior desativação da ferrovia o povoado passou a viver um longo e progressivo período de isolamento que levou muitos de seus moradores para longe. Agora, uma estrada de acesso à BR-262 vai ligar Porto Esperança a Corumbá, distante apenas 80 km e da qual é distrito, abrindo novas possibilidades de desenvolvimento, inclusive no que diz respeito ao incremento do turismo. Nesta página, um de seus filhos, o engenheiro Moacir Lacerda tece lembranças de um tempo profundamente marcado em sua memória e que se reflete em belas composições do Grupo Acaba, do qual é um dos fundadores.

 

 

 

MEMÓRIA

 

Tempos idos da Esperança

Moacir Saturnino de Lacerda*

 

Meus pais, seu Lacerda e dona Norina, ribeirinhos pantaneiros, geraram quatorze filhos, e eu nasci na cheia de 1951 em Porto Esperança-MS, então ponto final da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (NOB).

Nos meus tempos da infância vinham a minha mente histórias de medo, sangue e heroísmo do Forte de Coimbra (foto 1), que retratei na música “Ilha Brasil”, quando em minha primeira visita ao morro mirante e nas casamatas:

“Forte Coimbra: / Ontem marco de fronteira / Hoje fortaleza eterna / Sempre será para mim / A minha História viva / Atalaia da Nação / Manterei este cenário / Dentro do meu coração! (2 vezes) // Meu velho Forte Coimbra / Braço estendido da Pátria / Minha sentinela querida / Desta banda ocidental / Majestosa catedral / Muito além das Tordesilhas / Às margens do Paraguai / Guardião do Pantanal. // Resistência secular aos castelhanos invasores / Minha fortaleza de Fé, de histórias e de sonhos / Além do Fecho dos Morros / Alargou nossa fronteira / Fez brotar linda semente / Nesta terra pantaneira. // Tremulava alta no espaço a bandeira imperial / Verde oliva que se estende na linda Ilha Brasil / Os carandás balançando adornam o horizonte / Ao longe vejo o Amolar e as serras do meu País. // As casamatas abrigaram seus guerreiros ofegantes / Sinto a mão protetora da Santa, dando-me a Fé / A bravura dos heróis guerreando nas muralhas / Que se mancharam com sangue, com vitórias nas batalhas. // Forte Coimbra: / Ontem marco de fronteira / Hoje fortaleza eterna / Sempre será para mim / A minha História viva / Atalaia da Nação / Manterei este cenário dentro do meu coração !”

 

A Ponte, o Porto, o Fernandão

Até 1947, ainda não estava concluída a Ponte Ferroviária sobre o Rio Paraguai, e dessa forma os trens da NOB não podiam chegar a Corumbá.

A Ponte Ferroviária Eurico Gaspar Dutra (foto2) – recebeu um segundo nome, Barão do Rio Branco, idealizada em 1908 com uma extensão de 2.009,25 metros foi construída no período de 1938 a 1947, sendo Assis Scaffa o engenheiro responsável pela construção.

Dessa forma, o fluxo de trens da NOB até Corumbá só foi plenamente viabilizado na década de 50 do século XX.

Mais de trinta anos depois da construção, em 1984, cheguei a trabalhar como engenheiro ao lado do Dr. Scaffa na Enersul.

Antes da conclusão da ponte ferroviária, na Estação de Porto Esperança (foto 3), desembarcavam todos os passageiros provenientes de Bauru, Três Lagoas, Campo Grande e demais estações até Agente Inocêncio, e ali eram também descarregadas as cargas, para fazerem a baldeação através de navios e embarcações que seguiam para Corumbá e Cuiabá.

Nesta época, Porto Esperança chegou a ter a maior arrecadação de tributos de todo Estado de Mato Grosso.

Dentre os navios que navegavam nestes trechos fazendo o transbordo da NOB, cito o navio a Vapor Fernandes Vieira, conhecido pelos pantaneiros como Fernando Vieira ou Fernandão (foto 4).

A letra da música gravada pelo Grupo ACABA – Canta Dores do Pantanal, “Fernando Vieira”, composta por mim, meu irmão Chico Lacerda e José Charbel Filho, ilustra poeticamente nossas lembranças autobiográficas:

“Porto Esperança, Porto da Manga, / Piúva, Corumbá e Cuiabá // A prancha encosta no barranco / É hora de partir cantando. / Sacos e maletas, / Gente de muletas. // Redes estendidas no porão. / O cheiro da comida / No corre o andar de cima / Chegando gostoso no olhar / molhado da criança. // Avistando o dedo de São Gonçalo / Três dias antes de chegar / Lá vai Fernandes Vieira / Subindo o rio Paraguai. // Nesta rota de aventuras // Eu, meu pai, minha mãe, meu irmão / Vimos boiar melancias / Canoas com rapaduras / Na cheia do nosso chão.”

 

A infância, a adolescência, as lembranças

Porto Esperança e a NOB eram o único mundo da minha infância e adolescência até aos 15 anos, e convivíamos em harmonia com as cheias cíclicas do Pantanal, e registramos na música Ciranda Pantaneira que “a folha que a água leva, leva o bem e leva o mal”.

Durante os meses de cheias, quando as humildes casas e palafitas de Porto Esperança ficavam parcialmente submersas, os moradores ribeirinhos se mudavam para os vagões cedidos pela NOB, e ali ficavam naquela Arca até que as águas baixassem ao leito natural do rio Paraguai.

Não havia sofrimento para nós crianças, pois divertíamos pescando de cima dos vagões, dando canga pés e nadando nas águas pantaneiras.

A letra da música “Tempos da Esperança”, de minha autoria retrata Porto Esperança da década de 1940, e a dependência dos moradores e passageiros destes dois modais de transporte, trens da NOB e navios:

“Ao contemplar os tempos idos da Esperança / Ouvindo acordes de Lolê no bandolim / Lindos poemas declamados por Francisco / A voz suave do saudoso mestre Tim // O rio levando minhas lembranças para o mar / Algumas gotas sei que em chuvas voltarão / Para regar novos sonhos de criança / Fazer brotar novas canções no coração. // O Trem que chega traz notícia e alegria / Ao seu apito, o Porto afasta a solidão / Qualquer história é motivo para festa / Com rasqueado, muita polca e piricão // E para as lágrimas, ao ver o Trem a partir / Chegam navios para aliviar minha dor / Com a nova cheia surgirão novas sementes / Trazendo flores pra adornar meu grande amor.”

 

A partida, os estudos, a gratidão

Fechando estas breves palavras, descrevo o significativo na foto 5 registrada pelo amigo de infância e compadre Rubem Weber, onde eu estou com um olhar compenetrado e reflexivo, tendo o trem do comboio ferroviário da NOB ao fundo, ainda com vagões revestidos de madeira.

Eu estava saindo de minha terra natal, Porto Esperança, depois de pegar o Trem Arigó, que conduzia os passageiros do Porto até a Estação Agente Inocêncio (foto 6), para finalmente embarcar no trem de passageiro que vinha de Corumbá sentido a Campo Grande e Bauru.

Deixei meu porto seguro e meus pais para vir estudar em Campo Grande, onde concluí os cursos de Ginásio e Científico no Colégio Estadual Campo-Grandense (CEC), e me formei em Engenharia Civil pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

Sempre com um coração agradecido a Deus pela proteção e esperança para superar tantos sofrimentos advindos das enchentes, queimadas, fomes, inúmeras doenças e mortes de irmãos e amigos em volta, cheguei até aqui neste estágio da vida sabendo que o Senhor me ajudou.

Com a decadência e sucateamento da NOB, o abandono dos ribeirinhos desta região pantaneira, o Poeta de Albuquerque, parceiro e irmão Chico Lacerda registro estes tristes versos:

“A água veio e levou / Porto Esperança ficou / Sem esperança de amor. / A água veio e levou / As penas do papagaio / As histórias de Armandia / Levou na última cheia / A cruz da velha Tatu / O ensopado de piranha / E a cabeça de pacu. // A água veio e levou / Os trilhos da Noroeste / E as viagens de vapor // Nas correntes desta cheia / Poeta perdeu o verso / Que tinha ponto final / Nada ficou registrado / Quem tinha vida mudou / Porto Esperança ficou / Sem esperança de amor.”

Hoje, mais de 50 anos desde minha partida no Trem de Passageiros, Porto Esperança e a NOB deixaram marcas indeléveis na história de minha vida, e nunca saíram do fundo do meu coração, conforme podemos comprovar nos versos saudosos e festivos da música “Serpente de Ferro”:

“Barulho no espaço, é boca da noite / Os trilhos vibrando na mesma frequência / Abraços e passos na mesma cadência / Soltando fumaça, lá vem o meu trem // O trem vem chegando, matando saudade / Com pouco dinheiro o sonho viaja / Levanta poeira, é só alegria / A vida começa na marcha do trem // Vagões de madeira, segunda e primeira / Lugar disputado, Jandira no rádio / Janela estampada com rosto cansado / O abraço que fica, lá vai o meu trem // Cabeça no ombro, som de violão / Sanfona e viola, lá vai o vagão / A vida viaja noutra sinfonia / Já tem alegria no sonho que vai // Mulheres, crianças comendo matula / Farofa de frango, paçoca na mão / O trem que apita rasgando distância / A nossa infância viaja de trem // Miranda, Albuquerque, Taunay, Agachi / Já tem peixe frito / Tem chipa, tem manga, guavira, pequi / Na antiga cantiga do trem / Eh Pantanal! / Em cada parada tem nova partida / O cometa viaja beijando lagoas / Com asas pro céu vem a despedida / Guatós, Kadiuéus, cavalos, canoas // Eh Pantanal! / Do boi que caminha / Tem cores no chão / A serpente de ferro atravessa / Com muito cuidado / Silêncio apertado / Na história no trem! // Eh Pantanal! Eh Pantanal! ...”

 

* Moacir Saturnino de Lacerda (foto 7) é engenheiro, administrador, compositor, produtor e pesquisador cultural, fundador do Grupo ACABA - Canta Dores do Pantanal. Associado efetivo do IHGMS, cadeira 38 (patrono: José Octávio Guizzo).

 

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Música e poesia pela paz

 

Foi lançada no dia 28 de outubro no Instituto Histórico e Geográfico de MS (IHGMS) a Antologia Musical e Literária “A Chama da Paz na América do Sul” que reúne em DVD 312 arquivos entre faixas musicais (226) e depoimentos em áudio (86). Coordenado por Moacir Lacerda, o projeto cuja temática surgiu em 2015, teve como motivação duas datas relacionadas à Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870): 2020 – os 150 anos do término do conflito, e 2022 – os 150 anos do Tratado de Paz assinado em 1872. Na parte musical, além das canções épicas, ícones de músicas regionais, fronteiriças, contemporâneas, nativas e folclóricas. Nos áudios, precedidos por cantos de aves que habitam o Pantanal, protagonistas da área cultural discorrem aspectos de pontos que sugerem reflexões sobre questões que de alguma forma estão relacionadas ao conflito bélico. Um segundo lançamento da Antologia, que contou com incentivo do Fundo de Investimentos Culturais de MS (FIC), foi realizado no Rio de Janeiro no dia 9 de novembro como parte da programação da sessão comemorativa dos 85 anos do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil.

Autor: Moacir Lacerda

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