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07/05/2021

O Forte de Coimbra e ... nós.

PATRIMÔNIO

 

O Forte de Coimbra e... Nós

 

Recentemente o Forte de Coimbra foi pauta de matérias nos meios de comunicação por conta da possibilidade de intervenções, já desautorizadas pelo Iphan, em seu entorno.  Para saber um pouco mais sobre o que esse patrimônio representa para a história regional, neste artigo Francisco Mineiro relembra sua implantação e passagens do tempo em que a fortaleza era garantia de limites na fronteira Oeste do Brasil.

 

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Francisco José Mineiro Júnior*

 

 

O que NÓS, em Mato Grosso do Sul do século XXI, temos a ver com uma fortaleza perdida em algum canto do Pantanal? Pois é, temos sim. O Forte de Coimbra fez o MS ser parte do Brasil hoje. Vamos entender...

 

O “erro” que se mostrou uma sorte

Lá por 1750, Portugal e Espanha enfim definiram os limites dos territórios na América, pelo Tratado de Madri. Mas tratado é só papel, precisa de força que o respalde. Então, o Capitão-General da Capitania do Mato Grosso, Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, decidiu construir fortes para manter os espanhóis afastados. Ao Norte, o Forte Príncipe da Beira. Ao Sul, o Forte de Coimbra.

Em 1775, Cáceres deu instruções a um Capitão, Matias Ribeiro da Costa, para fundar esse Forte. Matias, sem mapas, apenas com a descrição verbal, desembarcou no Estreito de São Francisco, 280 quilômetros ao norte do que seria o local correto. Na realidade, como se provou depois, o “erro” foi uma sorte: mais ao sul, a fortificação estaria muito perto de Assunção e longe demais para receber apoio dos portugueses.

A 13 de setembro de 1775, Matias fundou o “Presídio de Nova Coimbra”. “Presídio”, que hoje significa “prisão”, naquele tempo era um quartel em área colonial.

A fortificação era uma cerca de troncos de carandá, com 110 metros de comprimento e 35 de largura. Dentro, alojamentos, depósitos e outras estruturas, tudo de carandá e coberto de palha. Só a casa da pólvora tinha telhas de barro.

Imagine, caro leitor, a vida das pessoas: calor, cheias, alimentação irregular, mosquitos, doenças, saudades. O maior risco era a presença constante de índios Guaicuru, hostis e conhecedores dos mistérios da terra. Um incidente sério ocorreu em 6 de janeiro de 1778. Uma comitiva de índios aproximou-se da paliçada trazendo alimentos... e índias. 54 soldados saíram do Forte para negociar, e foram mortos. Há até um filme inspirado nesse evento, gravado em Coimbra, “Brava Gente Brasileira”.

Nem esse massacre arrefeceu a determinação portuguesa de cooptar os índios: em 1791 foi obtido um acordo de paz.

 

Em pedra, cal e com a ajuda de tempestades

Em 1797 chegou um novo Comandante: o Ten. Cel. Ricardo Franco de Almeida Serra. Homem excepcional em inteligência e dedicação, já com quinze anos de valiosos trabalhos no Brasil.

Ao chegar, ficou espantado com a decadência da paliçada. Em suas palavras, “poderia ser atravessada por um murro”. Ele projetou uma nova fortificação, “em pedra e cal”. É curioso como os fortes portugueses, no mundo todo, são muito semelhantes, enquanto Franco inovou, desenhando uma fortificação que aproveitava as curvas da colina sobre o Rio Paraguai. Mesmo sem recursos, colocou mãos à obra.

Portugal e Espanha entraram em Guerra em 1801. Por conta disso, e com olhos cobiçosos nas terras ricas em erva-mate, o Governador da província espanhola do Alto Paraguai, D. Lázaro de Rivera, planejou atacar Coimbra de surpresa, destruir tudo e prosseguir para o Norte, anexando largas faixas de terras à Coroa Espanhola.

O Forte estava inacabado, sem a muralha da retaguarda nem edificações internas. Um dia de setembro, chegou um índio, cacique Nixinica. Ele havia visto uma frota espanhola em Concepción, e remou 15 dias para avisar seu amigo Ricardo Franco.

Este mudou o material da paliçada para dentro das muralhas e preparou os seis canhões que tinha. Reuniu e orientou o pessoal: 49 militares e 60 civis. A 16 de setembro de 1801, quatro navios espanhóis, com 12 canhões e 900 combatentes, surgiram ao largo do Forte. Ricardo Franco mandou disparar seu maior canhão, e os espanhóis pararam, respondendo aos tiros.

Na manhã do dia 17, Rivera intimou Ricardo Franco a render-se. Este replicou que soldados portugueses só consideravam duas opções: “repelir o inimigo ou sepultar-se sob as ruínas do Forte”.

O cerco prolongou-se por nove dias. Dentro das muralhas nuas, bombardeios, tiros, doença, escassez de alimento, o onipresente medo da morte. A pouca cobertura era para proteger a preciosa pólvora, e o sol inclemente ou chuva torrencial castigavam os defensores. Mas os luso-brasileiros resistiram, persistiram. Na verdade, o tempo estava a favor dos teimosos defensores. O Rio Paraguai baixava, ameaçando encalhar os navios. As tempestades danificavam os barcos dos espanhóis. Estes viam sua comida escassear.

Quando amanheceu o dia 25, uma feliz surpresa: a frota desaparecera rio abaixo, de volta ao Paraguai espanhol.

Não é muito acadêmico fazer suposições em História, mas... imaginemos, caro leitor, se a guarnição portuguesa se rendesse ou fosse surpreendida e massacrada. Rivera chegaria a Corumbá, talvez Cuiabá. Tudo seria espanhol quando as independências acontecessem nas décadas de 1810 e 20. Nesse quadro hipotético, talvez o MS seria Bolívia ou Paraguai, e o caro leitor estaria falando espanhol.

 

Viva N. Sra. do Carmo

Passam-se décadas, e o velho rio era partilhado por Brasil e Paraguai, numa paz tensa. Em dezembro de 1864, ocorria a visita de inspeção do Comandante do Distrito Militar do Baixo Paraguai, Tenente Coronel Hermenegildo Porto Carrero, quando, sem aviso, uma frota paraguaia acercou-se do Forte na madrugada do dia 27.

O Comandante paraguaio, Coronel Vicente Barrios, contava com 10 navios, 12 canhões raiados, trinta foguetes e 3.200 homens. No Forte, 155 militares e 20 índios, com 11 canhões velhos... e muitas famílias.

Porto Carrero, instado a render-se, replicou que “somente pela sorte e honra das armas entregaremos o Forte”.

Começou pesado bombardeio, alternado com ataques de infantaria. A munição leve quase findou já no dia 27. Mas as 70 mulheres presentes no Forte, lideradas por D. Ludovina, esposa de Porto Carrero, trabalharam incessantemente. Fabricaram milhares de cartuchos com todo o papel e tecido disponível, inclusive as saias de baixo de suas próprias roupas.

Narram as crônicas que, na tarde do dia 28, os paraguaios estavam a ponto de escalar a muralha oeste. Foi quando o corneteiro, Soldado Verdeixas, por pedido de D. Ludovina, subiu à muralha com a imagem da padroeira do Forte, e gritou vivas a Nossa Senhora do Carmo. A mesma imagem trazida por Franco, e que está lá até hoje. O que aconteceu a seguir recebeu fama de milagre: surpresos, os paraguaios interromperam o ataque e responderam “Viva Nuestra Senhora del Carmem”. A Santa Padroeira do Forte – e do Exército Paraguaio – foi longamente ovacionada de parte a parte... e os atacantes recuaram.

Naquela noite, a situação dentro do Forte era desesperadora. A munição novamente acabava. Logo, o destino estaria selado: morte aos homens, violência e humilhação às mulheres.

Impôs-se a penosa decisão de retirada. Em silêncio, esgueirando-se por estreita trilha na mata, homens, mulheres e crianças chegaram à embarcação Amambaí, oculta numa curva do rio. Todos chegaram a Corumbá a salvo, a tempo de alertar sobre a invasão iminente. O fato de nenhum defensor haver morrido com o bombardeio e os ferozes ataques também é reputado como um milagre de N. Sra. do Carmo.

Anos depois, na retirada, os paraguaios destruíram até as paredes do vetusto Forte de Coimbra. Finda a Guerra, foi reconstruído e viveu décadas de paz.

 

Lugar de Gente, valor histórico

Em 1906, foi erguido um novo quartel, em uso até hoje, próximo do Forte. Em 1940, no contexto da II Guerra Mundial, Coimbra recebeu poderosos canhões 152,4 Vickers-Armstrong, capazes de atirar projéteis de 50 quilos a 15 quilômetros. Hoje, assinalam um mirante sobre a exuberante paisagem pantaneira.

A função do Forte foi mudando. Antes uma barreira sobre o Rio Paraguai, passou a ser um vigia sobre a extensa e problemática fronteira, além de marcar a presença do Estado brasileiro naqueles ermos. Atualmente, um pequeno efetivo militar guarda o valioso patrimônio da União.

Com o rolar dos séculos, surgiu um povoado. Filhos, netos e bisnetos de militares que se aposentaram em Coimbra, desde sempre, foram se estabelecendo por ali. Nos anos 1970, refugiados das grandes enchentes foram autorizados pelo Exército a se refugiarem em Coimbra... e lá ficaram. E a União foi construindo casas funcionais para os militares. Assim, no entorno do Forte, existe uma povoação múltipla. Capela, Escola, as Vilas Militares, templos, cemitério, posto médico, pequeno hotel e o porto. Em ocasiões solenes a Guarda do Porto usa trajes históricos. Também são marcos locais a Gruta Ricardo Franco e o mirante.

No contexto pacífico do Mercosul, o Forte tem quase nenhum emprego militar. Mas tem valor, porque faz parte da alma castrense o apreço pela História da Pátria e da Instituição. E Coimbra guarda, em suas paredes centenárias, um valor histórico inestimável. Tanto da História do Brasil, influenciada pela heroica defesa de Ricardo Franco em 1801, como das milhares de histórias de pessoas que por ali viveram. Oficiais e pescadores, soldados e peões, marinheiros e fazendeiros, sargentos e índios, seja por meses ou por uma vida. O Forte e a Vila de Coimbra sempre foram, antes de tudo, um lugar de GENTE.

E, mesmo a gente de MS que nunca ouviu falar sobre o centenário Forte de Coimbra, teve sua vida influenciada por suas muralhas e seu destemido Comandante, naquele longínquo setembro de 1801...

 

 

* Francisco José Mineiro Júnior, professor e coronel do Exército, é pós-graduado em Psicopedagogia pela UF do Rio de Janeiro, Educação Ambiental pela UnB, e Metodologia do Ensino de História pela UNIC. Co-autor do livro “Forte de Coimbra: História e Tradição”. Associado correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MS.

 

** Sobre as imagens: 1. O Forte de Coimbra visto do Rio Paraguai por quem chega de Corumbá; 2. Aula para os alunos do Colégio Militar de Campo Grande no Mirante dos Canhões (os ipês floridos ornamentam as margens do Rio Paraguai, e o longínquo horizonte já é na tríplice fronteira, Brasil, Bolívia e Paraguai); 3. Em ocasiões muito especiais, os soldados da Guarda do Porto da 3ª Companhia de Fronteira / Forte de Coimbra vestiam uniformes históricos de soldados coloniais portugueses (ao fundo, uma imagem de Nossa Senhora do Carmo no mesmo local em que foi erguida em 1864 e, na muralha, a frase de Ricardo Franco); 4. A imagem trazida por Ricardo Franco em 1797 (a mesma que foi erguida sobre as muralhas em 1864) até hoje recebe as orações dos militares católicos, os quais mantém a tradição de agradecer as graças alcançadas colocando insígnias no manto da Santa.

 

Autor: Francisco Mineiro Junior

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