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15/01/2023

Tunita Mendes: memória vivida, memória sentida

MÚSICA

 

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Campo Grande tem na música uma das formas mais expressivas de sua riqueza e diversidade cultural. Na cidade formada por nativos e migrantes de diversas procedências, ao lado de estilos variados evidencia-se também a música erudita que, a partir de meados do século passado, ganhou espaço com a instalação de conservatórios e núcleos de ensino. Nesta página* a professora e pesquisadora Arlinda Cantero Dorsa revisita a memória de Antônia Pereira Mendes – mais conhecida como Tunita Mendes – responsável pela formação musical de gerações de campo-grandenses.

 

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Tunita Mendes: memória vivida, memória sentida

Arlinda Cantero Dorsa**

 

 

Memória, história e identidade

À primeira vista, a memória parece uma coisa inerte, presa ao passado – a lembrança de algo que aconteceu, de alguém que viveu, de uma experiência ocorrida que ficou parada no tempo. Mas, um olhar cuidadoso revela que a memória é dinâmica e conecta as três dimensões temporais: ao ser evocada no presente remete ao passado tendo em vista o futuro.

Pierre Nora na obra “Entre memória e história: a problemática dos lugares” publicada em 1993, traz o conceito de memória como sendo “a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento”. Complementa esta afirmação Julio Pimentel em “Todos os passados criados pela memória”, publicado em 2001, para quem a memória “recupera a história vivida, história como experiência humana de uma temporalidade”.

Já para Jan Assmann e Aleida Assmann, ambos professores da Universidade de Konstanz, Alemanha, a memória cultural é “a faculdade que nos permite construir uma imagem narrativa do passado e, através desse processo, desenvolver uma imagem e uma identidade de nós mesmos”. Assim acontece com o cheiro da comida preparada em família, a música que remete a alguém importante, uma foto ou uma história contada na hora de dormir. As memórias nos tornam quem somos. São elas que nos ajudam a compreender o mundo, moldam nossa visão e nos apresentam aquilo que nós lembramos ou aquilo que queremos esquecer.

Nesse sentido, conceitos como esses nos remetem a falar da grande pianista e vanguardista no ensino de música em nossa cidade: Tunita Mendes.

 

O recomeço da memória

Olhar uma foto nos provoca diferentes emoções e pode levantar perguntas como a que era feita no IHGMS pelos que visualizavam um porta retratos na mesa de recepção da instituição: Quem é esta linda mulher?

Por algum tempo a interrogação permaneceu mas não demorou para a resposta se apresentar: a imagem até então não identificada que ali, anônima, havia chegado com um acervo de jornais doados para a hemeroteca, era da musicista Tunita Mendes – mulher refinada, elegante, exímia concertista e professora de piano.

Para mim, relembrar sua história é voltar à minha infância e mocidade quando me remeto ao tempo da rua Barão de Melgaço em Campo Grande e, mais especificamente, ao Edifício Arlinda, propriedade dos meus avós: Francisco e Arlinda Serra, lá pelo final da década de 50 do século passado. Foi lá que tive a oportunidade de ouvi-la muitas vezes tocar quando, de forma sorrateira, eu e meus primos nos aproximávamos da escada que conduzia ao seu apartamento. Ela foi inquilina de minha avó por uma década.

Um pouco de sua história chegou-me às mãos, graças aos dados do aluno e amigo fiel até seus últimos dias: o pianista e professor Júlio Figueiredo que leciona no Centro Arte Viva, em Campo Grande. Foi a partir dele que a minha memória se reavivou com o empréstimo de um material valioso: seu álbum de fotografias e uma página de reportagem publicada em 18 de janeiro de 2003 pelo jornal Correio do Estado. Tendo por título “Morre a pianista Tunita Mendes”, essa matéria assinada pelo jornalista Oscar Rocha relata de forma machadiana “as pontas da vida” de Antônia Pereira Mendes, a Tunita.

 

Quem foi Tunita Mendes?

Nascida em Miranda em 1927, Tunita veio para Campo Grande onde, no Colégio Auxiliadora, teve os primeiros contatos com a música. Seu talento musical fez com que a família se mudasse para o Rio de Janeiro onde concluiu o curso superior de música e passou a integrar o Quarteto de Cordas da Universidade do Rio de Janeiro, estudando com nomes importantes da música erudita.

De volta a Campo Grande, no final da década de 1950, tinha como meta a divulgação da música de concerto o que incluía a participação em programas da Rádio PRI-7 executando temas de piano. Segundo depoimento de seu esposo, Antonio Salmi, ela também participava de sessões musicais com os demais músicos, entre eles sanfoneiros, e ministrava aulas particulares em sua residência.

Em 1964, fundou o Conservatório Mato-Grossense de Música que atuava como departamento do Conservatório de Música do Rio de Janeiro realizando, então, um intercâmbio intenso com músicos daquele Estado, segundo depoimento de seu esposo.

No final da década de 1960, o Conservatório passou a formar técnicos em música na área de piano e canto. Encerradas suas atividades em 1992, Tunita Mendes voltou às origens ministrando aulas em sua residência.

 

Lembranças e ensinamentos

Algumas marcas foram fundamentais nessa grande professora e pianista emérita: sua elegância, beleza e educação refinada aliadas a um profissionalismo incansável na busca de aprimoramento musical e ao amor incondicional à musica de concerto. Qualidades citadas por centenas de ex-alunos e hoje profissionais de destaque como Júlio César Figueiredo, seu amigo e posteriormente colega de ensino musical: “mesmo doente não deixava de ensinar; suas iniciativas, a busca constante de aprimoramento aliadas ao amor à música são marcas lembradas desta grande profissional”. Ou pelo maestro Manoel Rasslan que, na reportagem de Oscar Rocha, assim se expressou sobre a artista: “Ela conseguiu passar a nós, seus alunos, a confiança de que podíamos sobreviver de música – trabalhando e estudando”.

Uma pesquisa no ambiente virtual, em um primeiro momento, não traz maiores informações sobre a grande mestra cuja atuação é anterior à internet. Mesmo assim, é possível encontrar profissionais que hoje brilham em diferentes lugares e que tiveram o privilégio de estudar no Conservatório Mato-grossense de Música com a professora Antônia Pereira Mendes ou melhor, com Tunita Mendes.

Sentar-se diante de uma apresentação da pianista Beatriz Augusta Ritzenthaler não é apenas acompanhar um concerto, é ser envolvido por ele. Emoção. A pianista de Campo Grande-MS mora há 12 anos nos Estados Unidos, onde fez mestrado em música pela Andrews University de Michigan. O primeiro dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó, foi tocado aos 6 anos de idade. O pai de Beatriz tinha o sonho de ver os filhos trilharem o caminho da música e a colocou para fazer aulas, à época, com a professora Tunita Mendes. Beatriz vive hoje integralmente da música. Toca sozinha um estúdio de piano com 40 alunos em paralelo ao trabalho filantrópico na ONG que criou em 2009, “Global Thinkers Now”. Em concerto solo ou dueto a quatro mãos, ela leva a música brasileira de Villa Lobos no repertório e chega a treinar até 6 horas por dia para aprimorar a técnica e de acordo com a intensidade de um programa novo a ser apresentado.

Outra lembrança nos conduz a Jane Borges, natural de Cuiabá-MT, que iniciou seus estudos de música no Conservatório Mato-grossense de Música, sob orientação da professora Tunita Mendes. Concluiu em 1977, no Rio de Janeiro, o Curso Técnico de Piano no Conservatório Brasileiro de Música e a Graduação em Música, com habilitação em Piano, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em 2003, obteve o mestrado em Artes pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, sob orientação do prof. dr. Marco Antonio da Silva Ramos e o doutorado em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Atualmente é professora da Universidade Federal de São Carlos onde desenvolve projetos de extensão na área Coral e de pesquisa na área de Formação de Professores.

Nascida em Campo Grande, Keila Michelly é pianista concertista. Também iniciou seus estudos de piano, aos sete anos, com a professora Tunita Mendes, no Conservatório Mato-Grossense de Música. Mudou-se para Curitiba-PR em 1993 e em 1994 ingressou na Escola de Música e Belas Artes do Paraná (Embap), onde concluiu  bacharelado de Instrumento com especialização em piano. Teve aulas de piano com o professor Ulfried Tölle e já se apresentou em vários teatros no Brasil. Entre eles o Teatro Aracy Balabanian onde, em 1997, realizou um concerto em homenagem à professora Tunita Mendes. Atuou como professora de música nas escolas In Concert, Laodate, Shalon e estagiou na Embap. Atualmente é professora na Academia de Música Aplause e no Instituto Musical, preparando seus alunos para ingressar na Embap, já que é uma das escolas de música mais concorridas do país, por se tratar de uma instituição pública renomada.

No encontro que tive com o professor e pianista Júlio Cesar Figueiredo senti não somente o amor e respeito incondicional a esta grande artista de nossa terra mas também a vontade de que resgatássemos a memória de Tunita Mendes, desafio que, como pesquisadora, aceitei de bom grado. Outros trabalhos virão sobre esta figura tão importante para a nossa história musical.

A memória é, assim, como um artifício para proteger o passado contra a ação corrosiva do tempo e para dar subsídios para que os indivíduos entendam o mundo e saibam o que esperar, “para que não tenham que inventar a roda e começar do zero a cada geração”. É ela que nos dá a identidade e nos permite: ter uma biografia, aprender coisas novas, rememorar fatos e eventos vivenciados, provocar emoções, afetos. É ela que nos permite ouvir os sons, sentir os cheiros, sabores e cores e que nos faz lembrar de algo especial, ajudando assim a construir a nossa história.

Que a memória desta grande musicista, que nos deixou em janeiro de 2003 aos 76 anos de idade, sirva de inspiração a todos nós para que ela fique viva na história dos grandes artistas que divulgaram a música em nossa cidade e serviram de base para que novos talentos tenham surgido entre nós: a roda da vida!

 

* Este artigo é uma resenha de relato apresentado em painel sobre Artes Musicais no XVI Seminário de Desenvolvimento Institucional de Mato Grosso do Sul (SEDIMS) promovido pelo IHGMS em outubro de 2022.

** Arlinda Cantero Dorsa é doutora em Língua Portuguesa (PUC/SP); professora do Programa de Pós-Graduação do Mestrado em Desenvolvimento Local da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Associada efetiva do Instituto Histórico e Geográfico de MS (cadeira n. 4 - patrono: Aleixo Garcia).

*** Fotos: vista aérea de Campo Grande na década de 1960 (acervo Arca); retrato de Tunita Mendes jovem (acervo IHGMS); Tunita/piano (arquivo CE).

 

 

Imagens: Reprodução

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Na década de 1960 Campo Grande era uma cidade predominantemente plana como revela foto da época. Sua população girava em torno de 65 mil habitantes. Migrantes em grande parte deles, com seus costumes reforçavam as características múltiplas da cultura local. Foi nesse ambiente que Tunita Mendes iniciou suas atividades na área da música clássica formando gerações de campo-grandenses que guardam na memória os ensinamentos da competente professora, da exímia concertista e da refinada e elegante mulher.

 

Autor: Arlinda Cantero Dorsa

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