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19/04/2021

Dia de índio: que data é esta?

19 DE ABRIL

 

Dia do Índio: que data é esta?

Paulo Eduardo Cabral*

 

Criado por decreto federal em 1943, o Dia do Índio, diferentemente do que esperavam seus idealizadores, passou a ter comemorações de caráter discutível sendo relegadas a segundo plano as reflexões sobre a participação dos povos indígenas na formação social brasileira. Neste artigo, o sociólogo Paulo Cabral faz um rápido retrospecto sobre a instituição da data, das relações do Estado brasileiro com as populações indígenas e das etnias presentes em Mato Grosso do Sul.

 

Considerações Preliminares

O Dia do Índio, 19 de abril, foi instituído por Getúlio Vargas pelo Decreto-Lei 5.540 de 1943 – que em suas razões dispõe: “[...] tendo em vista que o Primeiro Congresso Indigenista Interamericano, reunido no México, em 1940, propôs aos países da América a adoção da data de 19 de abril, para o ‘Dia do Índio’[...]” – sendo estabelecido em um único artigo e revogando disposições em contrário. A escolha dessa data derivou do fato de o referido congresso ter iniciado nesse dia.

Conforme se vê, a adesão foi tardia. Três anos até o Brasil se manifestar favoravelmente à proposta, segundo consta, por pressão do Marechal Rondon. Certamente, um dos aspectos que interferiram nessa demora foi a política de unidade nacional daquele período, que buscava uma identidade nacional, para a qual era decisiva a construção do vago conceito de “povo brasileiro”, porém, amplo o suficiente para nele abarcar todas as diferenças fossem étnicas, regionais ou de classe, diluindo-as.

E assim, como tantas outras datas festivas o Dia do Índio passou a integrar o calendário cívico escolar. Diferentemente do que esperavam os seus idealizadores, as comemorações assumiram um caráter bastante discutível; as crianças eram/são pintadas, ganhavam simulacros de cocares feitos em cartolina, numa pantomima quase carnavalesca, pela qual os índios eram ridicularizados, numa caricatura grotesca. E nenhuma reflexão sobre a participação dos povos indígenas na formação social brasileira.

Aliás, nesse particular, a historiografia oficial deu conta de tornar os indígenas invisíveis. Eles figuram nos primeiros capítulos relativos à chegada dos europeus. Na sequência estão em episódios de invasões ao território, ora se aliando a estrangeiros, ora aos portugueses. Em seguida eles desaparecem... Fala-se de outros temas. E os indígenas são expulsos “naturalmente” da narrativa histórica.

 

Entrecho

Os povos indígenas, durante o período colonial, foram relegados pela Coroa Portuguesa que, de sua parte, centrava-se na exploração de riquezas para guarnecer o seu erário. Os paulistas, de sua parte, tiveram intensa atividade de apresamento de índios sobretudo durante o período de domínio holandês, escravizando-os para seu próprio uso e para venderem nas praças onde os batavos não marcassem presença. A escravidão indígena no Brasil é um fato.

Com o advento da Independência, há a preocupação de se estabelecer alguma forma de política para atender à população indígena. José Bonifácio de Andrada e Silva chegou a formular alguns pontos do que seria essa política. Entretanto, a questão servil era candente. De um lado os interesses dos senhores, de outro, a pressão internacional desencadeada a partir da Inglaterra. O governo imperial, diante da circunstância, carreou toda a sua energia para prorrogar o quanto pudesse a escravidão no Brasil, deixando de lado os indígenas.

Será somente a partir da República que o Estado brasileiro assume para si a responsabilidade de desenvolver uma política para os povos indígenas. Então, Cândido Mariano da Silva Rondon, inspirado nos ideais positivistas e cioso da separação entre Estado e Igreja Católica, concebe, em 1910, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), com a premissa de tutelá-lo e integrá-lo à sociedade nacional. Para tanto, põe em prática um sistema de aldeamento em “reservas”, pelo qual as populações originárias foram retiradas de seus territórios tradicionais e transferidas para a “reserva indígena”. Ao desencadear essa estratégia, muitas terras foram liberadas e vendidas pelos governos estaduais, produzindo conflitos até hoje não pacificados.

Em 1967, o SPI é sucedido pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Nessa época, foram adotadas intervenções desastradas, como introduzir índios Terena em território Guarani, com a intenção de incutir-lhes o senso da agricultura. Ou a retirada dos Ofaié de sua terra tradicional para depositá-los na área Kadiwéu.

Em 1991, as competências relativas à saúde, educação, desenvolvimento rural e meio ambiente, foram retiradas da Funai e distribuídas por diferentes órgãos. O Ministério da Saúde organizou os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) e as secretarias estaduais assumiram a educação escolar indígena. Esse esvaziamento provocou uma desidratação do órgão que, a rigor, nunca conseguiu realizar plenamente as suas atribuições.

 

Situação atual

Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), atualmente há no Brasil 256 povos indígenas, falantes de 150 línguas diferentes. Esses números ilustram a extraordinária diversidade cultural desse universo. Contudo, frequentemente as pessoas se referem ao “índio” como uma categoria homogênea, sem diferenciações entre si, o que é um grande equívoco.

Mato Grosso do Sul tem forte presença indígena em sua formação social, são nove os povos aqui presentes, a maioria deles com uma realidade de contato secular. Os Guarani são entre todos os que primeiramente estabeleceram relações com espanhóis e portugueses que avançaram sobre seus territórios. Figuram em duas etnias, os Kaiowá e os Ñandeva (também autodenominados Guarani). Distribuem-se na área correspondente ao Cone Sul do Estado, de Mundo Novo até Douradina, passando por Rio Brilhante e Maracaju, chegando a Bela Vista e Antônio João e em toda a extensa fronteira com o Paraguai. Nessa vasta região restam várias glebas em disputa, com litígios que se arrastam por décadas.

O povo Guarani nas últimas duas décadas do século passado viveu a tragédia do suicídio. A retomada da sua cosmogonia, a construção de casas de reza (oga-guassú) e respectivos rituais foram fundamentais para interromper aquela trágica epidemia.

A expansão dos sítios urbanos fez com que muitas cidades se aproximassem das reservas. O exemplo mais evidente é o das aldeias Bororo e Jaguapiru, em Dourados, com todos os problemas decorrentes dessa situação. Mas, a despeito de todos os percalços os Kaiowá e Ñhandeva seguem resistindo para manter a sua identidade étnica.

Os Terena foram os que melhor realizaram o processo de adaptação, tirando partido daquilo que a sociedade nacional proporciona, sem abrir mão da sua cultura, principalmente, da língua materna. Essa etnia, estudada por Fernando Altenfelder, em 1947, contava à época cerca de 3.000 pessoas. Hoje ultrapassa 30.000. Estão presentes em Miranda, Aquidauana, Anastácio, Nioaque, Dois Irmãos do Buriti, Sidrolândia e Rochedo.

Desde o início do século 20 vários Terena se tornaram servidores públicos dos Correios, NOB e SPI e depois Funai. Em Aquidauana cedo conquistaram cadeiras na Câmara Municipal e, ao tempo do bipartidarismo, chegaram a ter um vereador pela Arena e outro pelo MDB. Mais recentemente, as mulheres passaram a se dedicar ao comércio dos produtos da terra. Mas, a grande inovação que o povo Terena criou foram as aldeias urbanas. A primeira, há mais de 30 anos, na cidade de Anastácio. Depois vieram as de Campo Grande: Marçal de Souza Tupã-y, Tarsila do Amaral, Água Bonita e Darcy Ribeiro. Trata-se de uma experiência reveladora da dinâmica cultural desse povo que se reinventa sem perder a sua identidade.

Os Kadiwéu, também conhecidos por Guaicuru, transferem-se para o seu território atual, em Porto Murtinho, na segunda metade do século 18. Cavaleiros e guerreiros, estabeleceram tratados com Portugal e depois, durante a Guerra da Tríplice Aliança, com o Brasil. Em troca receberam de D. Pedro II a área que ocupam. Eles se destacam pelos elaborados grafismos com que decoram sua cerâmica e pintam seus corpos. É, entre nós, o povo indígena com melhores condições econômicas graças à terra conquistada ainda antes da criação do SPI.

Os Guató submergiram durante algum tempo. Acomodaram-se na periferia de Corumbá, passando-se por mulatos, em razão do tom de pele escuro. Em 1981, durante o I Seminário Sul-mato-grossense de Estudos Indigenistas, identificavam-se somente 14 pessoas dessa etnia. A partir daí muitos reassumiram sua identidade étnica e se agregaram aos seus patrícios. Sua aldeia situa-se na Ilha de Ínsua, no Rio Paraguai, quase fronteira com o Mato Grosso, porque são os índios canoeiros, conforme descrito por Hercules Florence. Sobre eles, Joel Pizzini fez o filme “500 Almas”, referência ao tamanho da população Guató à época.

Os Ofaié são um povo que vivia às margens do Rio Paraná, em Brasilândia e nos anos 1970 foram transferidos para Porto Murtinho, na área Kadiwéu. Chegou a ser considerado um povo extinto. Redescobertos por duas linguistas que, ouvindo uma língua diferente da Guaicuru, puseram-se a inquirir os seus falantes; concluíram tratar-se dos Ofaié. Eles retornaram para sua localidade de origem. Ela foi inundada para a construção da Usina de Porto Primavera. Daí, mudaram para o lugar definitivo onde se encontram. São pouco mais de 100 pessoas, porém, um grupo importante porque conserva uma cultura única, a do povo coletor de mel.

Os Kinikinau são uma etnia próxima aos Terena que, por serem a grande maioria, de certa forma fizeram que esse povo ficasse meio invisível. Seu grande fator de resistência é a língua materna. Encontram-se presentes em Miranda, nas aldeias La Lima e Mãe Terra e em Nioaque na aldeia Cabeceira.

O povo Kamba migrou da Bolívia por dissidências com seus patrícios e se alojou no município de Corumbá, há cerca de meio século. São mais de 300 pessoas que integram esse grupo.

Os Atikum, igualmente, vieram de Pernambuco por causa de problemas com os parentes. Contam poucas famílias na aldeia Cabeceira, em Nioaque. Estão aqui há 30 anos.

Reconhecer cada um dos diferentes povos indígenas de Mato Grosso do Sul é uma forma de respeitá-los e combater o preconceito. Lamentavelmente, a escola passa ao largo desse tema, apesar do Dia do Índio, mantendo crianças e jovens ignorantes da contribuição que eles trouxeram para a identidade sul-mato-grossense. E isso não acontece por acaso.

 

* Paulo Eduardo Cabral é sociólogo e professor. Ocupa a cadeira n. 22 do IHGMS (patrono: Hélio Serejo). Presidiu a entidade no período de 6 de novembro de 2016 a 31 de dezembro de 2018.

 

 

 

 

 

São nove os povos indígenas presentes em Mato Grosso do Sul. Reconhecer cada um deles é uma forma de respeitá-los e combater o preconceito. Nas imagens, a artesã Catarina Guató em foto de Fabio Pellegrini e desenhos referenciais de Guido Boggiani (índia Kadiwéu), Hércules Florence (índios Guató na confluência do rio São Lourenço) e J. B. Debret (carga de cavalaria Guaikuru).

 

Autor: Paulo Eduardo Cabral

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