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08/03/2022

Repente: a arte do improviso

 

Várias datas do calendário marcam o Dia do Repentista. No Ceará foi comemorado no último sábado, 5 de março, em homenagem a Patativa do Assaré (1909-2002). Patrimônio Cultural do Brasil, reconhecido em 11 de novembro de 2021, o Repente é mais comumente relacionado à região nordestina. No entanto, com características próprias, manifesta-se também em outras regiões do país, inclusive em Mato Grosso do Sul. Neste artigo, Ruberval Cunha, criador do Improviso Guaicuru conta um pouco sobre as origens e desenvolvimento dessa arte ao longo do tempo, bem como, em linguagem poética, pincela sua própria história e seu acaso com a oralidade.

 

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PATRIMÔNIO IMATERIAL

 

Repente: a arte do improviso

Ruberval Cunha*

 

Expressão secundária? 

De maneira conceitual a palavra Arte é oriunda do termo latino “Ars”, que significa habilidade. É definida como uma atividade que manifesta a estética visual, elaborada por artistas que lêem o mundo a partir de suas próprias emoções. Geralmente a arte é um reflexo da época e cultura vivida.

Ao falarmos em arte tratamos de variantes da criação, que envolvem a sensibilidade, a leitura de mundo (formal ou informal) e as técnicas para sua produção. Elementos cujo nascedouro têm como berço a antiguidade e continuam seu processo evolutivo ao longo dos anos, atravessando séculos e atualizando suas formas de expressão.

No universo literário se estabeleceu um “status quo” privilegiado e valorizado que no Brasil normalmente coloca em plano secundário a arte dos repentistas, a arte da oralidade e do improviso, quando estabelecida uma comparação com a literatura denominada formal. Todavia ressalte-se que em países europeus como por exemplo a França, há universidades que possuem cátedras de estudo acerca deste rico e representativo universo.

 

 Mas afinal, o que é o Repente?

Onde nasceu essa forma de expressão? Existem diferenças na produção dos repentistas entre as regiões? Há variações em sua forma de manifestação? 

Dentre os significados dicionarizados, pesquisados em Houaiss e Michaelis, Repente é classificado como um substantivo e quer dizer: 1. ação repentina, dito repentino e impensado; 2. qualquer improviso ou verso improvisado.

Na wikipedia ainda encontramos a seguinte definição: Repente (conhecido também como Cantoria) é uma arte brasileira baseada no improviso cantado, alternado por dois cantores, daí o nome Repente. O Repente na Cantoria de viola é desenvolvido por dois cantores acompanhados por violas (comumente a viola dinâmica de 10 cordas) na afinação nordestina.

Dado o fato de ser muito comum na região Nordeste do Brasil, a maioria das pessoas acreditam que o Repente é de origem nordestina, entretanto, essa é uma falsa impressão, uma vez que além de possuirmos outras variantes como as manifestações existentes na região Sul do Brasil, há correntes de pesquisa que defendem que o Repente tem suas verdadeiras origens na Europa com trovadores medievais, outros asseveram que existe uma predominância de influências mouras e judaicas em sua composição. Como podemos perceber, determinar sua verdadeira origem é algo ainda controverso. No Brasil sofreu um processo de tropicalização, sendo já uma tradição manifestamente secular, sendo muitas vezes evocada para legitimar outras formas de manifestação poética versejada e improvisada.

De ordem complexa a métrica do Repente se apresenta com inúmeras possibilidades combinatórias de estilo e ritmo, com destaque para os fechamentos de frase (verso) de maneira a ordenar o processo de rima.

Já a embolada ou embolada de coco não tem a obrigatoriedade da rima e de acompanhar a metrificação. Embora possa trabalhar com versos de improvisos por vezes costuma ter uma construção decorada, acompanhada por pandeiro. Normalmente versam sobre temas jocosos ou de ordem política, ainda que possam se estender sobre outros temas. Diferente da exigência da cantoria de viola nordestina que tem evoluído e acrescentado novos cantadores alçando um novo patamar, com encontros nacionais que remontam ao fim dos anos 1950 a embolada de coco tem cada vez menos representantes e não tem conseguido manter uma fonte de novos representantes que garanta sua permanência com destaque no cenário brasileiro.

Descendo para a região sul do país, encontramos as figuras dos repentistas gaúchos que costumam cantar acompanhados de guitarra e dos payadores, que também figuram em países fronteiriços como Uruguai e Argentina, entre outros.

 

O Repente em MS

Em Mato Grosso do Sul, a influência nordestina dos repentistas e emboladores é comumente vista na Festa da Farinha em Anastácio, já teve voz na Noite Nacional da Poesia (União Brasileira de Escritores seção/MS e SECTUR), além do Centro de Tradições Nordestinas (CTN) de Sidrolândia, e da nova vertente que desenvolvi influenciado pelo saudoso amigo Rachid Salomão (Repentista do Oeste). Inicialmente nominada de Repente Performático, mais tarde foi rebatizada de Improviso Guaicuru pelo amigo Rubenio Marcelo – músico, cordelista e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras – que assim descreveu minha arte de improviso: “Ruberval Cunha, afasta-se desta rigidez formal e, assim, flui em discurso corrido com suas estâncias constitutivas despreocupadas com modelos estéticos e/ou padrões métricos, mas dosadas de ritmo envolvente e rimas próprias, além de mensagens especiais voltadas para cada tipo de público – para isto (e como ele bem define) o nosso poeta ‘agrega técnicas teatrais, discernimento literopoético, elementos musicais e a participação interativa da plateia’”. 

 Na oportunidade, importante destacar a recente conquista desta arte com o reconhecimento pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) concedendo ao repente o status de Patrimônio Cultural do Brasil. 

Assim, reiteramos que manifestações artísticas populares podem ser consideradas além de sua aparência folclórica, lúdica ou artística, numa perspectiva que as situe como cenário de práticas sociais e construção da identidade. É através delas que estudiosos de diversas áreas estabelecem bases para fundamentar pesquisas de cunho antropológico, histórico e geográfico, entre outros. Trazendo à baila informações importantes que retratam a cultura e construção de ordem histórica de uma sociedade e seu povo. Dentro desse paradigma os gêneros que integram a cultura literária da oralidade, se apresentam como importante arcabouço de pesquisa para os campos da sociologia, antropologia, filosofia e da própria literatura. Na literatura e nos improvisos ressignificamos nossas vidas e descobrimos que podemos voar. Deixem que passarinhos nos inventem no caderno de suas asas. Nunca somos tão livres como no dia em que nos desenhamos voando. 

 

* Ruberval Cunha é associado efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS (cadeira 16 - patrono: Demósthenes Martins).

** Imagens: Ruberval (Alana Portela / Campo Grande News); Repentistas (Acervo Iphan); xilogravura (J. Borges para capa do LP Nordeste: Cordel, Repente, Canção).

 

 

 

 

 

Com recursos de teatro, poesia e música em ligadura com o Repente, Ruberval Cunha busca na história referências para ecléticas apresentações aos mais variados públicos. Nas imagens, Ruberval a caráter (com o tradicional berrante) em frente à Morada dos Baís em Campo Grande; xilogravura com ícone representativo da arte do Repente; e dupla de repentistas em apresentação durante festival em Brasília.

 

 

Ruberval e seu acaso com a oralidade

 

Ruberval Cunha é o criador do Improviso Guaicuru, modalidade que agrega técnicas teatrais, discurso poético e elementos musicais com participação direta do público. Tudo isso urdido pela espontaneidade do Repente. Sobre seu envolvimento com essa arte e, de forma mais ampla, o cordão umbilical que tem com a literatura, é o que ele conta a seguir em uma poética autoapresentação.

 

Escrito pelas palavras – Meu registro carrega, desde o nascimento, um nascer do sol, uma história de amor e o vínculo com as palavras, seja pela sua negação, aprendendo a força que o silêncio possui, seja pelo seu exercício na reafirmação dos sonhos que constroem a realidade. Sou contado pelas minhas histórias. Meu nascimento tem capítulos que vão do amor quase à primeira vista entre meus pais, Benedito Carlos da Cunha e Rita Araújo Cunha, passando por um princípio de eclampsia de minha mãe e o fato de parentes e amigos dos meus pais não acreditarem que eu tinha nascido. Fui um quase esquecimento. O último acontecimento se explica pela força de uma tradição que embora ainda exista nos dias atuais, estava no auge no ano de 1973, quando nasci no dia primeiro de abril. Por isso, ao ser questionado sobre como estava a gravidez de minha mãe, meu pai respondia efusivo: nasceu hoje, é um menino. Vocês estão convidados a visitá-los na maternidade Cândido Mariano. E a resposta era a mesma. “Ah! Primeiro de abril, nessa você não me pega.” Durante dois dias minha mãe praticamente não recebeu visitas e foi no terceiro dia, dada a insistência de meu pai em reafirmar que eu já havia nascido, que as visitas se iniciaram e multiplicaram na maternidade. 

Ao que soube, berço ou o carrinho não me atraiam e quando eu não ouvia a voz de minha mãe ou de alguém por perto, o choro ocupava os vazios da casa e os ouvidos dos presentes. Isto, até o dia que minha mãe inventou uma maneira de encantar o silêncio por mais tempo. Enquanto ela realizava seus afazeres a programação do rádio desfilava seu repertório para mim. Funcionou. Eu ouvia tudo aquilo e ficava quieto. As recordações que me pertencem desta época têm a voz emprestada dos meus parentes mais próximos, muitos dos quais o silêncio já chamou de volta. 

 Meus anticorpos para a vida têm uma estrada que passa pelo terreno do afeto familiar, das músicas infantis que cantavam para mim e meu irmão, Rubersandre e das visitas na praça Ary Coelho, onde os peixes e a fonte iluminada hipnotizavam meu olhar. Ali descobri a liberdade que uma beleza carrega, para mais tarde marcar encontro com a literatura e fazer dela meu instrumento de comunicação com o mundo.

Um garoto tímido, que gostava de ler e que aos poucos vai sendo escrito pelas palavras. Em Castro Alves descobri a busca pela justiça e igualdade, em Bilac a beleza dos sonetos, em Bandeira a liberdade da poesia e em Manoel de Barros a irmandade poética da imaginação criadora que ressignifica o mundo com as metáforas e neologismos. Mas antes disso meu versos moravam nas lixeiras. 

 

Identidade poética – Cursando Letras na Universidade Federal de MS, após alguns anos de vivência no meio cultural sul-mato-grossense comecei a ampliar os horizontes e, sem sequer desconfiar do quanto seria impactado por ele, conheci Rachid Salomão, saudoso cordelista, repentista, fotógrafo e editor da revista City-Show, no lançamento do opúsculo “Da lama para a Glória”, no espaço do teatro Aracy Balabanian, onde ele desfilou sua capacidade e me surpreendeu com seus improvisos livres. Fiquei maravilhado com aquela liberdade e agilidade poética, ao ponto de colocar no papel uma pequena trova, que alguém viu e que culminou na falsa interpretação de que eu também era repentista. A esta altura, ouvindo isso, Rachid me convidou para um duelo de repentistas e eu, inadvertidamente, desconhecendo sua história e com a ousadia dos inocentes aceitei. Bem o que ocorreu a partir daí mudou minha história como poeta e ator performático, definindo muito de minha identidade poética.

Autor: Ruberval Cunha

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