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18/11/2021

O trilhador de todos os caminhos.

Na última sexta-feira, 29, comemorou-se o Dia Nacional do Livro. A escolha da data marca o dia da fundação da Biblioteca Nacional, em 1810, depositária do patrimônio bibliográfico e documental do Brasil. Em Mato Grosso do Sul, consoante às suas finalidades de difusão cultural, o Instituto Histórico e Geográfico de MS tem publicado títulos que vão desde reedições de obras referenciais da historiografia regional até relatos de história oral. Nesta página, o conto Nhá Chaló que integra a coleção “Obras Completas de Hélio Serejo” editada em 2008.

 

 

HÉLIO SEREJO

 

O trilhador de todos os caminhos

Da coleção “Obras Completas de Hélio Serejo”*

 

Nascido em Nioaque em 1912, Hélio Serejo viveu desde os dois anos em Ponta Porã, conhecendo cedo a labuta nos ervais na companhia de seu pai, e depois, já aos quatorze anos, abrindo sua própria picada no rancho de Porto Baunilha, em Ivinhema. Tudo que viveu por lá se transformou em matéria de suas observações.

Em 2008, suas Obras Completas, em nove volumes, foram lançadas pelo Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, incluindo todos os livros publicados pelo autor. O então presidente do IHGMS, Hildebrando Campestrini, que sistematizou e revisou a publicação, conta que Serejo, já em seu leito de morte no Hospital Militar, onde faleceu com 95 anos em 2007, pôde ver uma cópia de cada volume, tal como seriam publicados depois de anos esperando por um reconhecimento à altura de sua extensa e preciosa produção.

Além do rico e minucioso registro de nossos costumes e tradições, descrevendo festas, lendas, animais e cenários do sertão, a obra de Hélio Serejo se destaca pelo primoroso trabalho com a linguagem. Original e inventivo, misturou o português com as contribuições do guarani e do espanhol, como se pode observar no conto Nhá Chaló reproduzido a seguir. (Moema Vilela**)

 

Nhá Chaló

Para dizer a verdade, nunca se soube o seu nome certo. Era para todos tão-somente Nhá Chaló. Dela, o que se sabia, era que passara toda a sua mocidade nos domínios da Industrial Paraguaia, reduto de trabalho dos pais.

Foi nesses famosos ervais que ficou conhecendo todos os segredos de elaboração da erva-mate. Ajudando os pais, ervateiros de profissão, fazia de tudo na ranchada, desde o preparo do fogo no barbaquá, até o ataqueio, que exigia muita perícia.

Jamais procurou arrimar-se a um homem enquanto viveu ao lado dos genitores. Tinha personalidade e uma conduta irrepreensível. Tarefa a seu cargo, por mais trabalhosa que fosse, era tarefa concluída. Embora de físico frágil, sua disposição para o trabalho sempre provocava comentários. Todos a adoravam. Por seu jeito quieto. Por sua fibra inquebrantável.

Um dia morre-lhe o pai, picado por uma jararaca. Fica a mãe, lutadora pertinaz, grávida de cinco meses. Cento e vinte dias depois, a mãe amorosa exalava o derradeiro suspiro, vítima de febre braba, após um parto de prolongado sofrimento.

O último pedido à filha Chaló foi para que criasse o menino. Não devia colocá-lo sob a guarda de ninguém, mesmo que fosse uma família rica. A moça franzina, mas gigante nas reservas interiores, atendeu à solicitação materna. Dez anos ainda viveu em território paraguaio.

Como sabia que inúmeras famílias que trabalhavam na IP (Industrial Paraguaia) estavam vivendo bem nos ricos ervais de Mato Grosso, resolveu cruzar a fronteira. Confiava em Deus e na sua coragem. Jamais pensou em fracasso.

Quando se empregou, como cozinheira, em um rancho ervateiro que ficava na orilha da fronteira, o irmão já estava com onze anos. Tinha nele, embora uma criança, um companheiro valoroso. A luta de ambos nos ervais sulinos foi de indizível sofrimento. Quando o irmão completou vinte e dois anos, Chaló era uma velha. Uma velha, porém obstinada, de garrão duro, que não se entregava. Chegou até aí com muitas doenças no corpo e vários desastres. O mesmo acontecendo com o irmão.

Nos dez anos que Chaló passou no Paraguai, após a morte da mãe, sua vida seguiu o caminho da benemerência, compaixão e amor fraternal. Sentia desejo, irrefreável, de socorrer o irmão sofredor, de ficar à sua cabeceira noites e noites. Era uma enfermeira de desvelo sem limites. Diziam que, nesses momentos, recebia a bênção da “Virgen de Los Milagros”.

Seu carinho para com qualquer doente tinha reflexos divinais. Foi se tornando conhecida. Sua fama de curandeira varou fronteiras. Passaram a vê-la como uma criatura excepcional, de brilho estranho no olhar e, acima de tudo, uma mulher que possuía mão santa.

Em virtude de seu mister curador e aquela formação espiritual que a servia, Chaló tornou-se profunda conhecedora da miraculosa medicina crioula. Levando tudo muito a sério, ia reunindo as espécies que curavam: folhas, raízes, frutos, cascas, brotos, baraços, pó, batatas, palmas, óleo, graxa, vinho, cipó, bagaço, sementes e resinas.

Num bem cuidado surrão de couro ia acondicionando tudo. Embora conhecesse os remédios um por um só no olhar, fazia as divisões em feixes ou pacotes para facilitar o preparo conforme a enfermidade. Transformou-se em uma “profesional”, mesmo nada cobrando pelo tratamento, que se estendia, constantemente, por dias e noites de aflição e angústia.

Antes de partir, buscando as fronteiras do Brasil, mandou cravar uma cruz de ferro na sepultura dos pais. Cruz feita de eixo quebrado de carreta para duração eterna. Uma homenagem de amor filial. Receava não mais poder voltar àquele lugar com o irmão. Sabia da distância entre os ervais de Tacuru e a tão falada região ervateira de Ygatemi.

Se não voltasse, nunca mais, a cruz de ferro, cravada naqueles ermos, atestaria o seu respeito, amor e saudade, e do irmão, aos pais amantíssimos.

Quando Nhá Chaló chegou com o irmão a Porto Baunilha trazia consigo o surrão de couro e, dentro dele, a sua “farmácia”, o seu laboratório de preciosidades vegetais.

Como era mesmo Nhá Chaló? Uma mulher que se diferenciava das demais, até no jeito de arrumar os seus longos cabelos, já matizados de fios brancos pelo inclemente inverno da velhice. Diferente, sim. Uma mulher que cortava de machado melhor do que qualquer homem. Uma atiradeira de espingarda que não perdia tiro.

Com suas passadas largas vencia o estirão sem aparentar cansaço. Tinha incomensuráveis reservas físicas. Sempre era a primeira a se levantar na madrugada alta a fim de acender o fogo da cozinha. Falava pouco. O suficiente do dia a dia. Dava ordens com poucas palavras. Não discutia nunca. Preferia aconselhar, quando possível.

Alta, magricela, angulosa, rosto fino, Nhá Chaló tinha, o que era notado por todos, qualquer coisa de misterioso no olhar. Aquele olhar, afirmavam, não era olhar de mulher comum. Algo de invulgar havia naqueles olhos de cintilações místicas. Ninguém duvidava do sobrenatural naquela mulher de braços longos e falar cadenciado. Daí – quem sabe! – o dom para as curas e aquele sentimento de piedade para com os enfermos.

O seu surrão de couro abarrotado de remédios, para um atendimento que nada lhe rendia, atestava, inquestionavelmente, um ser humano bafejado por privilégios espiritualistas. É o que se podia deduzir. Um caminho especial, na vivência terrena, para uma criatura especial, rica em amor e compaixão. (...)

Acompanhamos os seus passos e, por assim dizer, vivemos a sua vida. Fomos testemunhas, por várias vezes, das suas curas. No surrão de couro tinha sempre o remédio certo. Conhecida a doença, era só prepará-lo.

O irmão, companheiro de todos os momentos, era o massagista incansável. Servido de mãos enormes, forte e musculoso, executava com perfeição a sua tarefa. Era, sem nenhuma dúvida, discípulo obediente de uma grande mestra.

Quando fomos, certo dia, acidentado gravemente, ela não vacilou. Ordenou ao capataz, Felipe Benitez, que fôssemos colocado de cabeça para baixo para que o sangue não ficasse parado no lugar golpeado pelo galho de árvore que se despencara das alturas. Foi a salvação – afirmaria mais tarde o médico de Guaíra.

Não faltou no tratamento delicado a graxa de sucuri colocada, levemente morna, no buraco aberto na cabeça. Demorou, mas a cura foi completa, graças ao Senhor e às mãos santas de Nhá Chaló. (...)

 

AMOR FILIAL – A ranchada ervateira de Porto Baunilha está em festa. Os trabalhos foram encerrados às dez horas da manhã. O calendário marcava a data de 21 de agosto. Dia de aniversário do “patrón” Chico Serejo. Felipe Benitez, o capataz, e Bonifácio Ledesma, caraí Boni, o barbacuazeiro, o amigo de todos os momentos, resolveram festejar a “fecha mui importante”.

Com antecedência conseguiram dez litros de canha. Festa de erval sem pinga é festa de bobo. Os demais preparos, “todo listo”.

Os mbaracás em ordem. O piso do caramanchão bem preparado. Para um jeroqui de arrieiro, estava mais que perfeito. Para o baile, três cunhãs e uma menina de dez anos, que já servia para arrastar o pé. O resto era homem. Não tinha importância, porque jeroqui de arrieiro é dança de macho com macho.

A musiqueada, linda. O “apuá-hyeiva” mais ou menos afinado. A festança varou a noite. Muitos borrachos. Gritos de contentamento mas nenhuma briga entretanto. Muita disciplina. Muita ordem. A grande figura da festança foi Nhá Chaló. A ideia da homenagem partiu dela.

Ela sabia do aniversário do patrão amigo. Esteve incansável a noite inteira. Comandou, brilhantemente, a “divertición”. Como “tembiú”, carne de queixada, assada e frita, arroz, mandioca, feijão, farinha, pão de trigo e rapadura.

Na parte da manhã o aniversariante reuniu todos e agradeceu. Um agradecimento comovido. Era um homem sensível. Depois, aproveitando a oportunidade do momento, foi conversar com Nhá Chaló, a lembradora do “cumpleaño”.

Todos, pois estavam próximos, viram quando a curandeira famosa começou a chorar copiosamente. Ficaram intrigados. Não entendiam a razão do pranto. Tudo havia corrido na maior harmonia. Logo veio a explicação: dom Chico Serejo, aniversariante, homem grato, ofereceu a Nhá Chaló os recursos necessários para que ela e o irmão fossem ao Paraguai visitar a sepultura dos pais, onde, certo dia, cravaram aquela cruz feita de eixo quebrado de carreta. Iam poder voltar após três anos e pico. Daí o choro convulsivo.

Foram e voltaram via Porto Felicidade, Campanário, Ponta Porã e Pedro Juan Caballero. Contaram tudo com pormenores: visitaram a sepultura, acenderam as velas do amor filial e choraram sentidas lágrimas pela presença, ali, de ambos, o que julgavam um pesadelo, um sonho; falaram da vida difícil, dos ervais que começavam a se despovoar, dos rumores sobre uma provável revolução, dos que queriam tentar a vida no Brasil e tantas coisas mais.

Os dois irmãos agradeceram ao buenacho patrão pelo custeio da viagem. Um agradecimento feito com respeito e lágrimas nos olhos.

Igual a Nhá Chaló nunca houve, nos ervais de Mato Grosso, outra mulher guarani. Foi um exemplo. Um espelho. Um símbolo. Merece um lugar na história de mil tormentos da erva. (...)

 

* O conto Nhá Chaló integra a coleção “Hélio Serejo - Obras Completas (vol. VI, pp. 263-267), IHGMS - 2008. ** Excerto de apresentação de Moema Vilela para matéria publicada na revista Cultura em MS, n. 1, 2008. *** Imagens: Ilustração Nhá Chaló do Estúdio Wolfgang e Vaca Azul Corporation Association (revista Cultura em MS, n. 1, 2008); Foto Hélio Serejo de Raimundo Alves Filho (revista MS Cultura, n.2, 1985).

 

 

 

Em contos como Nhá Chaló, Hélio Serejo registra costumes e tradições regionais ao descrever festas, lendas, animais e cenários do sertão com linguagem única em que mistura o português com as contribuições do guarani e do espanhol. Este texto faz parte da coleção “Obras Completas de Hélio Serejo”, de nove volumes, publicada pelo IHGMS e que reúne 60 livros produzidos pelo autor entre 1935 e 2004.

Autor: Marília Leite

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