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25/12/2022

Natal entre a tradição e a inovação

25 DE DEZEMBRO

 

 

É Natal. Data em que as pessoas comemoram uma das festas mais tradicionais nos países cristãos. Nesta página, Marlei Sigrist – pesquisadora na área da Cultura Popular e Folkcomunicação – relembra  a origem de costumes e festejos próprios da época. Manifestações que podem ser revalorizadas em meio às novidades de um mundo cada vez mais globalizado.

 

O Natal entre a tradição e a inovação

Marlei Sigrist*

 

 

A celebração na origem

No Brasil, as manifestações culturais do Natal secularizaram-se desde os tempos da colonização portuguesa. Introduzida pelos missionários com base em tradições rurais europeias, converteu-se em celebração popular adquirindo feições diferenciadas nas distintas regiões que integram o território nacional.

A celebração festiva constitui uma remota manifestação da vida humana, que os estudiosos da cultura popular situam no alvorecer da sociedade agrícola. Sua motivação original é de natureza mágica. Destina-se a agradecer ou suplicar à natureza proteção para as plantações e colheitas. Por isso, sua periodicidade está quase sempre associada ao calendário da agricultura. Com o advento do cristianismo, a festa adquiriu feição comemorativa, vinculando-se ao culto divino.

A partir do século IV, o imperador Constantino permitiu encenações cristãs, o que antes era proibido. No entanto, foi com o advento dos presépios, no período natalino, que houve a possibilidade de representações diversas e união em torno da natividade, com foco nos pastores e nos Reis Magos. Os presépios criados por São Francisco de Assis em 1223 na cidade de Grécio e popularizado em Lisboa por volta de 1391, receberam acréscimos de cantos e danças populares numa interação teatral. A Península Ibérica foi o grande celeiro das manifestações populares para as Colônias e, no Brasil, os jesuítas garantiram sua reprodução, principalmente, através do teatro popular, com o fim último da catequese.

Desde então, as famílias brasileiras realizavam suas comemorações no aconchego doméstico e, às vezes, no pátio das aldeias. Havia uma demarcação bem definida entre o espaço privado e o espaço público durante os festejos, principalmente, delimitados pelas famílias mais abastadas, que preferiam os salões de suas mansões, enquanto a classe menos favorecida voltava-se para ambientes mais abertos, caminhos e pátios rurais.

Foi nesses ambientes que a cultura popular se fortaleceu, os grupos de folguedos aqueceram suas vozes e instrumentos para louvarem ao Menino, à Família Sagrada, aos Reis Magos, aos pastores, enfim, a esse universo simbólico que envolve o nascimento do filho de Deus na Terra, chegando até os dias atuais com novas configurações e ressignificados. É bom lembrar que no transcurso da sociedade industrial, os presépios e suas representações começam a dividir o espaço (e a perdê-lo) para novos símbolos importados da Europa: São Nicolau, Papai Noel e dos Estados Unidos a árvore de Natal e seu universo irradiado a partir de New York.

 

As Folias de Reis

Dentre os diversos folguedos do ciclo natalino, encontramos as Folias de Reis – cortejos formados por diversas pessoas, que nos estudos da folclorística estão contidas numa classificação maior dos Reisados, dos costumes natalinos ibéricos que preservam, principalmente, os aspectos religiosos de uma forma mais popular. Recebem outros nomes como: Companhia de Reis, Reisado e Terno de Reis, Reisados da Cigana, da Borboleta, do Pão Cacete, da Barquinha e outros tantos são suas variantes, mas seu caráter é religioso e representa a viagem dos Magos a Belém. Geralmente, a folia começa na noite de Natal, estendendo-se até o dia 6 de janeiro, quando acontece a festa dos Santos Reis. Muitos grupos de folias vão até o dia 20 de janeiro, em que comemoram São Sebastião. Durante esse período, percorrem bairros, cidades, fazendas, cantando em versos transmitidos de geração a geração o anúncio do nascimento de Jesus, seu padecimento e morte. Portanto, esses folguedos têm origem religiosa ligada ao devocionário natalino, porém mantêm uma religiosidade bem variável em suas formas culturais. Manifestam-se como grupos itinerantes e peditórios, visitam casas, recebem óbolos, às vezes alimentação para o grupo e outras formas de ajuda para a realização da festa.

Os grupos de Folias de Reis têm um alferes da bandeira, responsável por carregar o estandarte distintivo da folia; mestre e contramestre, que cantam e tocam sanfona, viola, violão, bandolim, cavaquinho, triângulo, pandeiro, bumbo, caixa, chocalho, entre outros; dois ou três palhaços (às vezes mais) com roupas vistosas e máscaras aterrorizantes, que se identificam com o “cão”, Herodes, Exu e outras entidades representativas do mal e da desordem. Os palhaços cantam chulas (versos decorados ou improvisados), satirizam os presentes, contam histórias, cantam, pedem dinheiro, fazem malabarismos, organizam o cortejo, comandando com suas espadas de madeira. Têm uma participação contrastante com a dos demais foliões, que marcham sérios, disciplinados e compenetrados (1). No entanto, quando estão diante do presépio, tiram suas máscaras e assumem um ar de respeito e seriedade, para declamarem suas vinte e cinco estrofes de versos que ilustram parte da vida de Jesus. Pode ocorrer de haver outros personagens como o Boi ou as Pastoras, os bichos e outros.

Quem são os participantes da Folia? São, em primeiro lugar, pessoas de fé. Os grupos de foliões, geralmente, se organizam para cumprir uma promessa, ou se fazem presentes por fortes laços de amizade com os organizadores mais antigos. Em meio à modernidade, ainda é uma tradição muito difundida e presente em Portugal, principalmente nas regiões de Beira-Alta, Beira-Baixa, Minho e Trás-os-Montes. No Brasil, existem folias no interior dos estados de Minas Gerais, principalmente nos municípios do sul do Estado; São Paulo; Rio de Janeiro (mais de 40 grupos se espalham da Zona Sul às periferias e estendem as comemorações até dia 20 – dia de São Sebastião, padroeiro da cidade do Rio); Goiás, Espírito Santo, Mato Grosso, principalmente Vila Bela. Em Mato Grosso do Sul, podemos encontrar Folias de Reis em Campo Grande, Paranaíba, Inocência, Aparecida do Taboado, onde acontece todos os anos o Encontro de Folias de Reis, reunindo grupos de outros municípios, inclusive de São Paulo. Há folias, ainda, em Bodoquena, Vicentina, Montese, Ivinhema, Águas do Miranda, Miranda, Três Lagoas, Dourados, entre outros.

Há mais de duas décadas pesquisei o grupo “Companhia dos Reis Magos”, liderada pelo Mestre Anaim Alves de Souza. Ela percorre as fazendas em Aparecida do Taboado, Inocência e Paranaíba, dependendo de onde mora o festeiro. Na ocasião registrei imagens dessa grandiosa festa, por meio de fotografia e de videodocumentário, que depois foram transformados em material didático-pedagógico.

Durante a pesquisa ficou claro que qualquer um, com olhar mais atento, poderá enxergar as Folias de Reis para além de um simples evento comemorativo do ciclo natalino e perceber, nos diversos níveis: 1) a TRADIÇÃO passada de uma geração à outra – o saber processado no cotidiano, reproduzido, alterado, refuncionalizado, reorganizado através dos tempos, frente às novas aquisições simbólicas e às novas informações; 2) a REAFIRMAÇÃO DA FÉ – a necessidade de renovar, ciclicamente, a ligação com o sagrado; 3) os ARTISTAS POPULARES – anônimos diante da sociedade de massa, mas reconhecidos como tais pelo grupo social ao qual pertencem; 4) os TRABALHADORES DA FESTA – porque existe uma movimentação incrível de trabalhadores que preparam o evento durante muitos dias, reforçando a solidariedade e a personalidade e coesão do grupo; 5) a PRESENÇA DA CRIANÇA, tanto nos trabalhos, quanto nos festejos – porque é a partir da sua participação, que ela apreende e aprende a cultura do seu meio social; 6) o PAPEL SOCIAL de cada um assumido naquele momento durante a festa – pois, cada ator social poderá ser o que realmente é na realidade, ou poderá assumir outro papel diferente do seu cotidiano, como no caso dos trabalhadores braçais que, durante as folias, representam o papel de festeiro, de palhaços, de mestres, ou dos próprios Reis Magos.

 

Inovação na era global

A velocidade com que as pessoas do mundo se interagem no cenário da aldeia global, tendo a comunicação midiática como canal propagador das novidades imediatas, faz com que os cidadãos se tornem um agente global, por mais distantes que elas residam e atuem no âmbito cultural. Elas se atualizam, consomem novidades e mantêm seus laços com a tradição que a família e a sociedade lhes transmitiram.

Nos centros urbanos, como afirma o amigo e mentor dr. José Marques de Melo, organiza-se, nos “supercenters” e “shoppings”, um espaço arrebatador no período do Natal, “ao qual acorrem não apenas os compradores dos ‘presentes para as festas’, mas também os fruidores de eventos culturais (música, cinema, teatro e outras diversões). A eles se agregam os estabelecimentos do gênero supermercados e hipermercados. Todos eles se organizam para ‘capitalizar’ o ‘espírito natalino’, convertendo-o em efetivo ato consumista, comportamento típico da emergente sociedade global. São estabelecimentos privados, mas que se comportam como instituições públicas, atraindo para os seus interiores (gigantescos) as multidões de consumidores que antes se acotovelavam nas vias públicas” (2). Enquanto que nos séculos anteriores à globalização as catedrais eram os grandes espaços onde ocorriam as comemorações natalinas, envolvendo o público e o privado, hoje os grandes templos são os “shoppings centers”, espaços onde ocorre o consumo de novidades.

É justamente nesses cenários e, também, nos espaços midiáticos que o povo se atualiza, adaptando sua cultura, inovando discursos ao declamarem seus versos, ao realizarem suas performances nos gestos, nos cantos, na organização da festa e das folias; enfim, para que sua tradição não se perca no emaranhado das novidades. O folclore atua como elemento de mediação/decodificação/adaptação no âmbito comunitário.

O tema é instigante para discussões em várias áreas do conhecimento e a própria manifestação pode ser revalorizada a partir do apoio das secretarias de Cultura e de Turismo dos municípios e do Estado, visando ao incentivo cultural e desenvolvimento turístico das regiões onde ocorrem as Folias de Reis em Mato Grosso do Sul.

 

* Marlei Sigrist é mestre em Educação, associada emérita do Instituto Histórico e Geográfico de MS.

** Referências: (1) Museu Édison Carneiro; (2) MARQUES DE MELO, J. “Signos globais no Natal brasileiro: percepções midiáticas”. XIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Cátedra UNESCO de Comunicação no Brasil: Londrina, Paraná – 4-7/9/1996.

*** Imagens: Xilogravura de Mario Ramires e fotos de Marlei Sigrist.

 

Imagens: Reprodução

 

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Tradicional folguedo natalino, a Folia de Reis pode ser encontrada em vários municípios
sul-mato-grossenses. Nas imagens, xilogravura com representação de personagens da
Folia de Reis e fotos de: Cia. Reis do Oriente / Campo Grande, criança no papel de Rei Mago
e palhaços em Folia de Paranaíba.

 

 

 

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Curiosidade: Reis Magos, por quê?

A palavra “Mago”, quando alusiva aos Reis Magos que visitaram o Menino, apresenta terminologia que refere aos sacerdotes da antiga religião persa, pertencentes à uma casta poderosíssima, pois eram tidos como sábios, possuidores de dons divinos por fazerem contato com o outro mundo através dos astros. Por isso, dedicavam-se ao estudo da Astronomia e práticas astrológicas e, por esse motivo, eram escolhidos para serem os preceptores dos príncipes persas. No cristianismo, o termo Reis Magos se refere aos célebres Melchior, Gaspar e Balthazar. Conforme nos conta São Mateus, eles vieram do Oriente para visitar o recém-nascido Rei dos Judeus e foram guiados por uma estrela (Mt.2, 1-12). Porém, as pinturas das catacumbas indicam e alguns escritores do século I sugerem quatro e até doze reis magos, como era o número de apóstolos de Jesus Cristo.

 

Autor: Marlei Sigrist

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