Artigos

02/02/2022

Decolando Daqui...

Comemorado na última terça-feira, 7 de dezembro, o Dia Internacional da Aviação Civil reforça a importância da atividade para o desenvolvimento dos países e comunidades. Em Mato Grosso do Sul teve papel relevante no desbravamento do Estado, especialmente na região do Pantanal onde a maioria das propriedades tinha um campo de pouso. Com colaboração de muitos protagonistas, suas famílias e amigos apaixonados pela magia de voar, grande parte dessa história é resgatada por Vera Tylde e Heitor Freire (associados efetivos do IHGMS) no livro “Decolando daqui... História da aviação sul-mato-grossense”.

 

.................................................................................................................

 

MEMÓRIA

 

Decolando daqui

Do livro “Decolando daqui... História da aviação civil sul-mato-grossense”*

 

O desejo de decolar e conquistar os ares como os pássaros é sonho muito antigo da humanidade. Ícaro, herói da mitologia grega, ao alçar vôo com asas de penas de gaivota coladas com cera de abelha, fascinado pela altura caiu no mar Egeu e morreu afogado. A tragédia, no entanto não deu fim ao sonho que alimentou a imaginação de inventores como Leonardo da Vinci e o brasileiro Alberto Santos Dumont que no ano de 1906, em Paris, colocou no ar o seu 14 Bis. Feito que concretamente tornou realidade o sonho de voar como os pássaros.

 

Saga pioneira

Na última terça-feira, 7 de dezembro, comemorou-se o Dia Internacional da Aviação Civil. Promulgada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1996, a data tem como objetivo reforçar a importância do setor para o desenvolvimento dos países e das comunidades. Como civil entende-se qualquer utilização não-militar da aviação. Ou seja, voos desportivos, panorâmicos e acrobáticos; bem como os de aeronaves experimentais, de ultraleves e de transporte de passageiros e cargas com fins comerciais.

Em Mato Grosso do Sul a memória da aviação civil registra os percursos dessa atividade significativa no desbravamento do Estado, especialmente da região do Pantanal onde cada propriedade tinha seu campo de pouso.

Tal saga é contada nas páginas da obra “Decolando daqui... História da aviação civil sul-mato-grossense”, de Vera Tylde de Castro Pinto e Heitor Rodrigues Freire, associados efetivos do Instituto Histórico e Geográfico de MS.

Conforme os autores, o livro convida o leitor a uma caminhada a partir da década de 1930 com relatos sobre aviadores pioneiros e também as iniciativas e peripécias de pilotos de táxi-aéreo (alguns, empreendedores) que marcaram época.

A seguir trecho de crônica de Abílio Leite de Barros (páginas 69 a 77 da segunda edição do livro). Nela, o professor universitário (bacharel em Filosofia e Direito) e pantaneiro de raiz relata sua história de fazendeiro “avoador”, como foi denominado por um velho bugre.

 

Fazendeiro avoador

Levantávamos os olhos, instintivamente, para vê-los, ver o pássaro voador, o avião. Não o jato, esse tubo imenso engolindo filas e vomitando multidões. Não o jato, esse condutor de gente apressada, sempre presa às suas preocupações e desesperos. Não o jato; levantávamos os olhos para o pequeno pássaro voador, o monomotor, o teco-teco, de íntimos afetos. Nenhum de nós, pilotos, deixava de fazê-lo ao ouvir aquele barulhinho do pequeno motor. [...]

Comecei a voar com 40 anos de idade, um pouco já perdidos os arroubos e ousadias da juventude. Decidi por uma necessidade operacional da condição de fazendeiro do Pantanal. Por terra fazia as viagens para a fazenda, primeiro em um jipe, depois caminhonetes a gasolina, e, por último, os impiedosos Toyotas que me avariaram a coluna e me jogaram na ideia, nunca imaginada, de virar avoador. [...]

No final de uma estafante jornada, segurando a dolorida coluna com as duas mãos, comuniquei à Carolina, minha companheira, a decisão de comprar um avião. Ela me olhou com assombro e desabusada gargalhada. Tomada de todo bom-senso, arguiu: “Como vai comprar avião se você não é capaz de entrar nele?” Era verdade, eu só entrava nesses aviõezinhos por extrema necessidade e nos jatões fechava os olhos e as mãos eram tomadas de farto suor de visível medo. Comprei o avião, um Cesna Cardinal de não muito uso. Comprei para me deixar na obrigação de usá-lo, aprender a voar.

Comecei os treinamentos em um velho Cesna 140 de dois lugares que, na aceleração de decolagem, batia as folhas soltas de sua idade já avançada. Ao lado, muito tranquilo, estava o Belaus Pereira, que iniciava a sua atividade de instrutor. [...]

Logo passei a fazer o treinamento no meu belo e sereno pássaro, o Cardinal. Comprei-o, já usado, do amigo Naim Dibo. Tratava-se de um modelo especial da Cesna para voo de lazer, muito comum nos Estados Unidos. Aqui eu o submeteria às grosseiras e malcuidadas pistas pantaneiras, além dos tropeços iniciais da minha inexperiência. Ele era o Bravo Indian Fox (BIF) e andamos juntos por mais de 12 anos. [...]

Apesar de brevetado, o medo ainda me aconselhava em não voar sozinho. Fiz um contrato com o Arany de Moraes, experimentado piloto e amigo certo, para que me acompanhasse nos primeiros tempos, até que me sentisse mais seguro. Pensei em cinco meses. Usei-o um mês e meio. Senti-me logo seguro, pois meus voos eram quase apenas no Pantanal que eu bem-conhecia, por terra, rodando naqueles Toyotas entortadores de colunas. [...]

Muito seguro do que fazia, esqueci os temores dos primeiros tempos e tornei-me um fazendeiro avoador, no dizer de um velho bugre pantaneiro, admirado com a minha coragem. [...]

Após 12 anos de uso, vendi o Cardinal, com tristeza, pois ele tinha sido companheiro daqueles primeiros momentos mais difíceis. Comprei um Piper Carioca da Embraer, zero quilômetro, que me dava mais segurança na decolagem e mais velocidade em voo de cruzeiro. Com ele, cheguei aos 67 anos ainda avoador – 27 anos no ar. Até que um dia, fazendo um voo de Corumbá a Campo Grande, aconteceu o até que um dia: de repente, sem motivos, comecei a sentir o velho medo que eu julgava finado. Voava sobre o Pantanal do Abobral coberto de água naquela enchente e de repente fui invadido por uma pergunta que me pareceu infantil: se tiver uma pane, pensei, onde vou pousar nesse mar? A pergunta não era infantil, tinha a marca da velhice que começava – 67 anos. Pousei tranquilo em Campo Grande e em silêncio abracei o meu filho Luciano que me esperava. Entreguei-lhe, emocionado, a chave do meu pássaro voador – ele já era piloto – que continuasse. Desde então, melhor do que eu, passou a ser um novo fazendeiro avoador. [...]

Retomando meu plano de voo em direção ao passado, devo aqui buscar na bússola o rumo do velho Aero Rural. Era nossa casa. Diziam naquele tempo que tínhamos lá em torno de 300 aeronaves, entre baseadas e em trânsito. Como ninguém de fato contou, penso com certeza em 200. Éramos um grupo de amigos empenhados todos no permanente auxílio mútuo. Do lado da rua de acesso, acompanhando a pista, ficavam os inúmeros hangares dos fazendeiros e das oficinas. Eu alugava uma vaga do Sr. Naim Dibo, de quem me tornei amigo, homem muito rico, apaixonado pela aviação e que, permanentemente, tinha dois ou três aviões para seu exclusivo uso. Custou a conseguir o seu brevê porque pilotava no lado direito, como aprendeu a voar. Vizinho havia o hangar duplo da família Coelho, outro da família Pereira, de meu amigo Leôncio Brito e muitos mais, muitos.

Com o grande número de aeronaves decolando e pousando no Aero Rural, parece milagre que não houvesse acidentes, pois não havia torre de controle. O controle era cuidadosamente feito por nós mesmos. Tínhamos uma frequência comum, nos rádios, que mantínhamos ligados de forma permanente. Ninguém rodava para decolagem sem indicar a cabeceira que faria uso e o destino. Igualmente nos sentíamos obrigados a comunicar nossa aproximação para pouso, pelo menos dez minutos antes, com indicação de rumo, altitude do voo e, na final, a cabeceira de que faríamos uso. O rádio, naquela frequência, também era usado para passar notícias do tempo, dos preços de arroba do boi e outras novidades. Até negócios eram concretizados em pleno voo. Além de costumeiras brincadeiras. [...]

Antes que busque o final deste voo de memórias, sinto-me na obrigação de lembrar nomes de outras pessoas ligadas ao ofício. Lembro-me de meu vizinho Fernando de Andrade em quem sempre busquei orientações. Naqueles momentos iniciais de temor, disse-me uma frase que não esqueci. Falou-me que “tinha medo de piloto sem medo”. Isso casava com o preceito que me passou outro amigo, o Major Ulisses de Almeida, ex-piloto da FAB, de que “há dois tipos de pilotos perigosos: primeiro os que ainda não sabem e segundo os que pensam que sabem”. Ao mesmo Major Ulisses, uma vez me queixei que não conseguia fazer dois pousos iguais. De pronto recebi sábia resposta: “e quem consegue?” Do Leôncio de Brito, amigão, que com sua morte precoce nos deixou um vazio, ouvi o conselho de que cuidasse em especial do vento de cauda no pouso e o pôr do sol na chegada. [...]

Agora que estou findando este voo, acabei interrompendo-o. Sozinho peguei o meu carro e fui procurar o Aero Rural. Quase não o encontrei e acho que teria sido melhor voltar sem vê-lo. É um escombro, uma tapera velha que nada lembra daqueles tempos alegres do intenso movimento aéreo. Voltei de cabeça baixa lembrando que aquele “intenso movimento aéreo” também acabou. As rodovias asfaltadas reduziram os caminhos e a renda dos fazendeiros voadores também reduziu a disponibilidade. Raramente hoje levantamos os olhos para ver alguns daqueles pequenos pássaros voadores. Mas, ainda sonhamos com eles.

 

* O livro “Decolando daqui...” (disponível para consulta e/ou aquisição no IHGMS) é de autoria dos associados efetivos do Instituto Histórico e Geográfico de MS Vera Tylde de Castro Pinto (cadeira n. 3, patrono: Eduardo Olímpio Machado) e Heitor Rodrigues Freire (cadeira n. 37, patrono: Harry Amorim Costa).

.....................................................................................................................

 

Imagens: Reprodução / livro “Decolando daqui...”

 

 

 

Comandando grandes ou pequenos aviões, os pioneiros dos ceús sul-mato-grossenses fizeram história encurtando tempo e distância. Em uma época de rodovias precárias e isolamento dos rincões do oeste brasileiro muitos deles foram protagonistas de verdadeiras sagas de coragem e companheirismo. Nas fotos, alguns personagens que têm suas histórias registradas no livro “Decolando daqui...”.

 

...................................................................................................................

 

Roteiro da obra

 

Organizado em capítulos, o livro “Decolando daqui... História da aviação civil sul-mato-grossense”, contou com a colaboração de muitos protagonistas, suas famílias e amigos com relatos de pessoas apaixonadas pela magia de voar. Ilustrando, os autores enriqueceram o trabalho com trechos alusivos ao tema extraídos da literatura regional. A seguir, resumo do conteúdo da obra.

1. O ADVENTO DO AVIÃO NO IMAGINÁRIO SUL-MATO-GROSSENSE – relatos da participação do avião em diversos acontecimentos regionais (entre eles a revolução constitucionalista) e acidentes com final feliz.

2. PARCEIROS DOS CÉUS: PILOTOS MILITARES E PILOTOS CIVIS – história e papel institucional da Base Aérea de Campo Grande.

3. PILOTO CIVIL: PROPRIETÁRIO RURAL – memória dos aviadores pioneiros Etalívio Pereira Martins, Osvaldo Arantes, Athamaril Saldanha, Júlio Alves Martins, Antônio Morais dos Santos e Abílio Leite de Barros.

4. EXECUTIVOS DO AR: PILOTOS DE TÁXI-AÉREO: história dos aviadores Arany da Conceição Moraes, Elenir Pulcena do Amaral, Norman Edward Hanson e Paulo Gustavo Arruda de Lacerda.

5. PILOTO COMERCIAL – entrevista com o piloto comercial (aposentado) Helio Ruben de Castro Pinto, relatando sua carreira e analisando a aviação comercial bem como o acidente sofrido pelo comandante Daniel Ariosto Portela.

6. FAMÍLIA EMBLEMÁTICA – família Cardoso, de Ponta Porã: seis irmãos aviadores.

7. PILOTO AGRÍCOLA E PILOTO CORRETOR DE IMÓVEIS – família Comparin e Alderi Dal Lago.

8. AEROCLUBES E ESCOLAS DE AVIAÇÃO – trajetória das escolas Amapil e Fly Company.

9. MECÂNICO DE AERONAVES, UM COADJUVANTE IMPRESCINDÍVEL – história do mecânico de aeronaves Wilson Fernandes.

10. AEROPORTOS – relação dos aeroportos nos diversos municípios e história dos aeroportos Aero Rural e Teruel.

11. CAMPOS DE POUSO – relação (com mapa) dos campos de pouso nos municípios do Pantanal e adjacências, num total de 552.

Autor: Marília Leite

Artigos RELACIONADAS

67 3384-1654 Av. Calógeras, 3000 - Centro, Campo Grande - MS, 79002-004 ┃ Das 7 às 11hs e das 13 às 17hs, de segunda à sexta-feira.

Site Desenvolvido por: