Artigos

27/11/2023

Zé Bonito - um herói esquecido

Zé Bonito: um herói esquecido

Celso Higa*

 

..................................................................................................................................

Resgatando tipos populares do cotidiano histórico de Campo Grande, o pesquisador Celso Higa, associado do IHGMS, traz a figura de José Mustafá – pessoa simples, do povo, lembrado por antigos moradores, desconhecido dos atuais campo-grandenses. Apelidado Zé Bonito, era um carroceiro altruísta que sempre pensou no bem-estar dos mais desvalidos e que, por quatro anos, trabalhou gratuitamente no transporte de material para construção do primeiro prédio da Santa Casa de Campo Grande. Uma exemplar história de solidariedade.

..................................................................................................................................

 

Prenúncio no nome

Mustafá em árabe significa aquele que dentre vários, foi o selecionado, “o escolhido”. Nome popular entre os mulçumanos, por ser esse um dos títulos dado ao profeta Maomé. Variante de Mustafa e Mustapha, é conhecido por seu apelido, na forma diminutiva: Tafá. Da astrologia indica, dentre os pontos positivos da sua personalidade, a determinação para tudo, com foco na superação dos obstáculos. De natureza ambiciosa, tendem a ser controladores, levando as suas decisões a sério. Mas se algo não der certo, sabe adaptar-se às novas situações e experiências.

Com esse astral, José Mustafá (1857-1972), o primeiro palestino que chegou em Campo Grande, também foi um abençoado. Nasceu em Belém ou Bethlehem (em latim), na Cisjordânia, dentro do território palestino e apenas 10 quilômetros de distância de Jerusalém. Local sagrado onde nasceu Jesus e onde Davi foi coroado rei de Israel, é muito visitado pelos turistas cristãos pelo apelo bíblico dessa Terra Santa.

Não se sabe quando Mustafá, sem estudo, chegou por aqui mas, como todo imigrante da comunidade árabe, foi ajudado por aqueles que o precederam a iniciar num negócio ou serviços. Sabe-se que, antes, trabalhou na Estrada de Ferro Noroeste do Brasil implantando dormentes e trilhos da linha férrea, até fixar em Campo Grande.

 

Campo Grande de outrora

Antes da ferrovia chegar (1914), a vila foi se capacitando naquilo que a modernidade exigia. Em 1905, a Câmara Municipal aprovou o Código de Posturas, cumprindo a regulação da higiene, o comércio, as construções e coibição da violência na cidade e arredores. A maioria da causa mortis era classificada como “doença da terra - calibre 44”, a lei do revólver na cintura. Foi um tempo que refletia o passado urbano violento, que necessitava de regras civilizadas. Em 1909, surge a Planta do Plano de Alinhamento de Ruas e Praças, elaborado pelo engenheiro agrimensor Nilo Javari Barém. Em 1910, a Câmara Municipal aprova através da Resolução nº 29 um orçamento de dois contos e quinhentos mil réis para o custeio de trinta lampiões para iluminação pública. Pela Resolução nº 40, concede ao italiano Nicola Veriangieri o privilégio para a construção do Matadouro Municipal. Em atendimento ao governo federal, o engenheiro agrimensor militar Temístocles Paes de Sousa Brasil vem aqui, faz um diagnóstico de que havia cerca de 500 casas e 1.200 moradores, constando suas impressões num pequeno livro “Ligeira notícia sobre a vila de Campo Grande”. Nele, incluso a Planta do Rocio. E, onze anos depois, em 1921, Temístocles publicaria o “Relatório dos estudos para abastecimento de água aos quartéis de Campo Grande”. Ainda na década de 1910, o entretenimento chega com as inovações do cinema. O cronista Valério de Almeida, subvalorizado memorialista nascido em Campo Grande, relata no seu livro “Campo Grande de outrora” que o italiano Ângelo Rafaelle Orrigo, conhecido por Raphael Orrico, exibiu as primeiras imagens com seu cinematógrafo a céu aberto. Era o Cine Brasil, no mesmo molde da matriz em Aquidauana. Sob as mangueiras do recém criado Hotel Democrata, estabelecimento que tinha um pavimento superior, num terreno todo murado, condições ideais para que o empresário cobrasse ingressos. Foi na Semana Santa de 1912. Em 28 de maio de 1914, chega a primeira locomotiva da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (NOB), vinda de Porto Esperança.

A cidade, aos poucos foi civilizando-se, transformando-se, modernizando-se.

 

Carroceiro especial

Existiam muitos carroceiros estrangeiros na época, japoneses traziam produtos hortifrutigranjeiros da zona rural, e outros que atendiam o perímetro urbano, faziam fretes à população. Um em especial, fazia seus carretos sem nada cobrar, se fosse para uma causa justa. Era o cidadão José Mustafá, o carroceiro Zé Bonito. Filantropo, sangue bom, também queria urgentemente uma casa de saúde para a população carente. Numa realidade plural, todos precisavam. O apelido foi uma troça dada pela população. Não era um Apolo, o deus grego da beleza; ao contrário disso, mas tinha um atrativo que o fazia ser querido por todos, possuía o charme da bondade. Pacato, super da paz, nunca portou uma arma (aliás, tinha somente um canivete para descascar laranjas). Para demandas dos serviços, andava na rua 14 de Julho com uma pequena charrete com rodas de madeiras, verificando quem estava fazendo reparos nas casas ou obras maiores, perguntava aos proprietários qual a necessidade de material para o imóvel e informava o seu custo do transporte. Sobrevivia dos fretes particulares. Passava nos depósitos de material de construção, carregava a compra dos clientes e entregava no local indicado.

 

Trabalho voluntário

A concepção da Santa Casa de Misericórdia de Campo Grande foi gerada em agosto de 1917 por um grupo de pessoas abnegadas da sociedade, como: Eduardo Santos Pereira, Augusto Silva, Otaviano de Mello, Benjamim Correa da Costa, Enoch Vieira de Almeida, Eusébio Teixeira e Bernardo Franco Baís. Este último, três anos após a criação dessa comissão, em dezembro de 1920, comprou por dez contos de réis a área onde se encontra a estrutura hospitalar. Mas a obra não fora iniciada. Uma unidade de saúde torna-se pioneira em 1924, com atendimento exclusivo para militares, o Hospital Militar (Hospital Geral de Campo Grande). O clamor por uma instituição para atendimento de saúde pública fez com que a adesão de pessoas abastadas ao projeto se viabilizasse, assim também pensava o Zé, o humilde carroceiro. Colaborou como podia, auxiliando o coletivo, com os seus carretos de materiais levados ao canteiro de obra, sem custo algum, para o desejado hospital da cidade.

Tudo ia para lá: tijolo, aterro, madeiramento, pedra, areia, saibro, cal, piso, telhas etc. A carga pesada era carregada na carroça reforçada de duas rodas e três parelhas de muares, com a isenção do frete. No seu entender, cumpria sua parte, contribuindo com o seu suor de homem simples, um anônimo do povo. No canteiro a obra logo tomava corpo, conforme cronograma do projeto do arquiteto italiano Camilo Boni. Aos poucos, tudo se transformava, como que parafraseando Chico Buarque: “erguia no patamar quatro paredes mágicas, tijolo com tijolo num desenho lógico”. Quatro anos nessa batida constante, auxiliou o compadre Boni (padrinho de uma filha de Zé), a obra filantrópica ficou pronta no final de 1928, com o pavilhão do Hospital de Caridade da Santa Casa, mantido pela Sociedade Beneficente de Campo Grande. Inaugurado em dezembro de 1928, a unidade de atendimento iniciou com 40 leitos, uma sala de cirurgias e outras dependências para o exercício da caridade e hospitalização dos enfermos.

O terrão atrapalhava a cidade. A terra vermelha, principalmente com os ventos de agosto, levantavam poeiras que sujavam as casas, ruas, passeios dos pedestres, encardindo a tez dos moradores, deixando-os mais morenos. Primórdios de um tempo que originou o carinhoso nome de Cidade Morena.

Era necessário o asfaltamento das vias públicas, fato que ocorreu no início de 1929, com aplicação do macadame, método desenvolvido pelo engenheiro escocês John Loudon MacAdam. O britânico, durante a Revolução Industrial, pavimentou muitas estradas, difundindo sua técnica mundo afora. O procedimento consistia na compressão de três camadas misturadas de pedras britadas (variando de 7,5cm, 5,0cm e 2,5cm) e areia/saibro, pressionada por máquinas pesadas com rolo compressor, que impregnada com um pouco de piche ou massa asfáltica, vedava o solo compactado. Postas numa fundação com valas laterais que constituem os meios fios, para escoamento das águas pluviais. Os trabalhos executados pela empresa Firmo Dutra & Cia. Ltda. começaram na rua Temístocles, descendo a 14 de Julho, com calçamento de ruas transversais.

 

Lembranças da filha

Dos laços de família, Zilda Mustafá Bornia, 84, filha do Zé e Ubelina Ramiro de Jesus, fluem memórias afetivas do convívio caseiro.Contou do insucesso no primeiro matrimônio, onde perdeu tudo que lhe garantia sua vida confortável, seus três caminhões, seu terreno na rua do Mangue (atual rua Joel Dibo), onde se encontra atualmente o SESC Horto. Um dos que o ajudou, no período próspero, diziam os antigos amigos do pai, foi Naim Dibo. Este o auxiliou nas entregas de frutas em Aquidauana e Ponta Porã. Caiu o seu padrão de vida mas não o desanimou, resiliente, iniciou a sua trajetória como carroceiro.

Seu pai tinha amizades fortes com imigrantes, notadamente: o sírio Chaia Jacob, o libanês Nacim Abrão, o palestino Mohamed Salem Handam e o italiano Camilo Boni. Batia seu ponto no centro, jogando conversa fora na Clipper Calçados (de Miguel Abrão), Clipper Tecidos (de João Abrão) e Casa Palestina (de Mohamed Salem). Nesta última, o vereador Jamal Salem, lembrou que, quando menino, das suas subidas na charrete do Mustafá. De outros amigos do cotidiano, da lida do pai, ela lembrou de João Cebola e Nego Turco.

Dentre os vários funcionários que o ajudavam na condução da carroça, no corte de grama e preparo de ração para os burros e mulas, como Augusto Biancão, João Martim e o negro Manelão. Dentre os vários ajudantes, Zilda conheceu Arlindo Bornia, com quem se casou e teve quatro filhos.

Da tropa, composta por seis muares, entre burros e mulas, lembra nomes de alguns: Baronesa, Turquesa, Maravilha e Fujão (porque fugia toda 6ª feira). Tinha outros que eram para reposição, substitutos para o descanso dos animais titulares. No seu espaço criava uma vaca Jersey, perus, galinhas d’Angola e ovinos, dos quais sacrificava alguns no fim do ano. Apreciada na culinária árabe, as ovelhas eram cortadas aos pedaços, separadas e embrulhadas como presentes aos amigos mais próximos, no centro da cidade.

Não obstante os ganhos parcos da sua profissão, não negava ajuda a quem o procurasse. A andarilha loura Rosinha, pedinte que ia com seu companheiro de ocasião, usualmente o visitava no horário do almoço, quando o assunto era fome. Compadecido, Zé pedia para esposa: “Ubelina, prepara dois sortidos!”. Outro pormenor lembrado por Zilda: durante a primeira gestão do prefeito Antônio Mendes Canale (1963/1967), a equipe de obras cortou o canavial mantido pelo pai, numa área atrás do Colégio Oswaldo Cruz até o córrego Segredo. O Poder Público tinha como intuito abrir uma via na região. A área fora arrendada por Zé junto ao proprietário Cândido Moliterno e o bagaço da cana era utilizado como fonte de fibra na nutrição animal. Possesso, foi à sede da prefeitura municipal que funcionava na avenida Afonso Pena com a avenida Calógeras, para tirar satisfações. O caso foi-se arrastando sem definição, tanto que Zé Bonito publicou uma nota no jornal que reverberou junto à opinião pública. O município indenizou o carroceiro pelos danos causados ao canavial. Nas memórias do dr. Hélio Mandetta, em seu livro “A medicina que vivi”, esse canavial traz-lhe doces lembranças. A cana que o menino pegava escondido era transformada em gomos, descascada e cortada em cruz. Consumida, trazia alegria e energia ao organismo infantil.

O carroceiro Dadú, Sebastião dos Anjos (1927-2003), trabalhou na lenharia de Zenichi Oyadomari, no espaço aos fundos da atual Casa do Peixe, junto à Praça das Araras/Cabeça de Boi, rua João Rosa Pires (antiga avenida Schnoor). As lenhas cortadas em tocos eram precificadas conforme o tipo da madeira e tamanhos padronizados. O poder calorífico da madeira, as dimensões da lenha e sua adequação aos fogões de uso, definiam a preferência da clientela. Já era customizado naquela época. O tipo 1, era o angico/aroeira; capitão o tipo 2 e outras de qualidade menor do material lenhoso, incorporavam o tipo 3. Atendia bares, hotéis e residências, como o Bar Três Poderes, o Bar Cristal e o Hotel Gaspar. Sobre o Zé Bonito, disse que era quem dominava o mercado, na carga/descarga com volumes expressivos. A carroça dele comportava 4m³, a de Dadú 1/2m³. Mustafá buscava cal e cimento, vindos de Corumbá, no Armazém Central da NOB. Material como areia e tijolos eram negociados junto ao palestino, que na ocasião morava na rua João Rosa Pires, 313, ao lado da FIEMS. A necessidade do cliente era dimensionada pelos cálculos da capacidade da carroça do Zé, que partia para os areeiros e olarias em torno da cidade. Os areeiros eram junto aos córregos, onde caminhões não acessavam porque atolavam. As carroças conseguiam ir à fonte, que basicamente eram em três locais, encontro de um afluente com um córrego principal, num pontal das águas. Um ficava no córrego Segredo, no bairro São Francisco, represado com o curso d’água da av. Rachid Neder, que trazia os sedimentos arenosos através das chuvas; o segundo, no córrego Anhanduizinho, próximo ao antigo laticínio e, o terceiro na região norte, abaixo do CEASA, no Sóter.

Zilda lembrou que seu pai gostava dos tijolos maciços rústicos produzidos na região do Imbirussu, na olaria de Valdomiro Mota.

Olvidado pelo tempo, desconhecido pelas novas gerações de funcionários, o idoso e adoentado José Mustafá não conseguiu vaga nem na indigência hospitalar. Ironia do destino, de quem tanto ajudou a construí-lo.

Em 1981, quando o presidente João Baptista Figueiredo inaugurou o atual complexo da Sociedade Beneficente da Santa Casa de Campo Grande, Zilda representou o pai nesse acontecimento. A instituição se redimiu, num resgate à sua memória o homenageou com o “Auditório Carroceiro José Mustafá – Zé Bonito”.

José Mustafá, o carroceiro Zé Bonito viveu muito, conforme atesta a Certidão de Óbito do Cartório Donini – 2º Ofício de Notas e 1ª Circunscrição de Registro Civil, atingiu longevos 115 anos. Faleceu em 17 de dezembro de 1972, de edema pulmonar, cardiopatia arteriosclerose. Ele, em vida, doou todo seu esforço e generosidade, em prol de uma população carente de Campo Grande em tempos difíceis. Não sabia ler nem escrever, mas dentro da sua simplicidade foi feliz. É um dos nossos heróis esquecidos.

 

* Celso Higa é engenheiro eletricista, economista e pesquisador regional, associado do Instituto Histórico e Geográfico de MS (cadeira n. 5).

-------------------------------------------------------------------------------------------------------

Fontes:

1) “Campo Grande – 100 Anos de Construção”, História da medicina em Campo Grande, texto de Olney Cardoso Galvão, p. 255

2) “Campo Grande – 100 Anos de Construção”, Os palestinos, texto de Jamal Mohamed Salem, p. 345

3) “A medicina que vivi”, de Hélio Mandetta, p.109

4) “Santa Casa – Patrimônio de Mato Grosso do Sul 1917-2017”, de Vera Tylde de Castro Pinto

5) “A Rua Principal – Série pelas ruas de Campo Grande”. O calçamento, de Paulo Coelho Machado, p.19

6) “1903 – 1993” – Câmara Municipal de Campo Grande

7) Site da Santa Casa: www.santacasa.cg.org.br

8) Site www.dicionáriodenomesproprios.com.br

9) Cemitério Santo Antônio - Consultas sobre sepultamentos

10) Cartório Donini - 2º Ofício

11) Depoimentos de Zilda Mustafá Bornia, Ronaldo Amin, Leandro Chaia e Jamal Salem

12) Entrevista com Sebastião dos Anjos (Dadú), realizada na rua São Caetano, 88, Vila Cinamomo, bairro Santo Antônio, em 13/07/1996

 

Homem simples, solidário com as causas dos mais necessitados, Zé Bonito sobrevivia de seu trabalho como carroceiro e não se furtava a fazer carretos gratuitamente se a causa fosse justa. Na primeira imagem, com sua família; na sequência, a carroça e seus muares de trabalho, primeira unidade da Santa Casa de Campo Grande, placa do auditório José Mustafá – Zé Bonito e sua filha Zilda Mustafá Bornia.

 

Fotos:

1. José Mustafá e família; carroça com muares: Arquivo da família Mustafá

2. Primeira unidade hospitalar da Santa Casa: Revista Folha da Serra /ARCA

3. Placa do “Auditório Carroceiro José Mustafá – Zé Bonito”: Celso Higa

4. Fotos em preto & branco: tratamento digital de Rachid Waqued

5. Zilda Mustafá Bornia: perfil pessoal no Whatsapp (autorizado para divulgação)

 

Autor: Celso Higa

Artigos RELACIONADAS

67 3384-1654 Av. Calógeras, 3000 - Centro, Campo Grande - MS, 79002-004 ┃ Das 7 às 11hs e das 13 às 17hs, de segunda à sexta-feira.

Site Desenvolvido por: