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06/09/2022

Além de José Antonio

CG 123

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Campo Grande comemora 123 anos de emancipação política na próxima sexta-feira, dia 26. Mas essa não é a única data a ser lembrada. A chegada de José Antônio completou 150 anos em 21 de junho último e dela quase nada se falou. E antes disso, haveria outras datas, outros protagonistas a serem evocados?

Nesta página, o sociólogo Paulo Cabral ao abordar as origens da cidade, lembra, além de José Antônio, fatos e personagens que antecederam o 26 de agosto de 1899. Por sua vez, a arquiteta Regina Maura Cortez traz à tona a questão das águas que permeiam o território urbano e que tanto contribuiram para a fixação dos pioneiros. Hoje, escondidas, quase não são identificadas e compreendidas como elementos essenciais para a formação da cidade.

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Além de José Antônio

Paulo Eduardo Cabral*

 

A propósito do sesquicentenário da primeira viagem de José Antônio Pereira a Campo Grande, deve-se assinalar o obsequioso silêncio dos poderes públicos a respeito do fato. A postura adotada resulta de um processo desencadeado há cerca de duas décadas, contestando a narrativa de que ele teria sido o fundador da cidade. Essa questão, no entanto, não chega a ser fundamental na análise de um processo histórico. A maior parte das cidades brasileiras tem sua origem diluída em uma conjuntura na qual os pioneiros participam do esforço para lançar as bases da futura cidade.

Antes do último quartel do século 19, muitas pessoas e grupos estiveram pela região. A passagem das Entradas e Bandeiras (ensejando que se estabelecesse, em 1725, uma base de apoio no Varadouro de Camapuã), a fundação de Albuquerque (primeira denominação de Corumbá) em 1778, e a chegada, em meados do século 19, de mineiros do Triângulo à região do que viria a ser Paranaíba – desconsideradas as reduções estabelecidas por jesuítas espanhóis em nosso território e os assentamentos indígenas – são referências pioneiras de Mato Grosso do Sul.

Entretanto, será a Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870) o fator determinante para a efetiva ocupação do então Sul de Mato Grosso. A vitória brasileira garantiu a posse de toda a faixa de fronteira de Mundo Novo a Bela Vista, ensejando o surgimento do ciclo da erva-mate.

Por essa época, por aqui houve a formação de fazendas destinadas à exploração pastoril, dentre elas a Fazenda Lageado, comprada em 1838 por José Manoel Ornellas e a Fazenda Cabreúva, desmembrada da Fazenda São João do Varadouro e vendida, em 1855, a Joaquim de Souza Moreira (1). Conforme registro de Arlindo de Andrade Gomes em seu Relatório à Câmara Municipal, de 1921, “Mato Grosso é um estado que está sob o regime de latifúndios. O nosso município é felizmente mais dividido, apesar de encontrarmos fazendas de mais de cem léguas” (2).

Segundo os irmãos Figueiró, o proprietário da Fazenda Cabreúva “continuou a sua ocupação e cultivo, sendo interrompidos por causa da Guerra [...]os fazendeiros [...] após cerca de mais de vinte anos, ainda lutavam para retornar às suas terras” (3). O abandono de inúmeras propriedades por dilatado tempo, tornou essas terras, ainda que regularizadas, como se fossem devolutas. Por outro lado, ao retornarem da guerra, os soldados levaram notícias sobre os Campos de Vacaria principalmente para Minas Gerais.

Essas informações, aliadas à ausência de terras para todos os familiares em Monte Alegre, Minas Gerais, animaram José Antônio Pereira a buscar um lugar onde pudesse estabelecer posse. Epaminondas Alves Pereira, bisneto de José Antônio, diz que, além dele, integravam a comitiva “seu filho Antônio Luiz, dois escravos (os irmãos João e Manoel) e Luiz Pinto, prático em viagens pelo sertão [...] Em 4 de março do ano de 1872, a pequena caravana partiu de Minas rumo a estas paragens [...] chega a 21 de junho na confluência de dois córregos, mais tarde denominados Prosa e Segredo” (4).

Erguem rancho, plantam roça, assuntam as imediações com o propósito de trazerem familiares e agregados para cá. Em novembro, decidem pelo retorno a Monte Alegre, e então incumbem os cuidados daquela posse a João Nepomuceno.

Epaminondas Pereira relata que em meados de 1875, chega por aqui Manoel Vieira de Souza (Manoel Olivério) acompanhado de familiares. Esse encontro deu ensejo para que João Nepomuceno lhe oferecesse a posse “com a condição de que, se o dono aparecesse, Manoel Olivério a entregaria mediante o ressarcimento”.

A 14 de agosto do mesmo ano retorna José Antônio Pereira com uma grande comitiva, onze carros de bois, toda a família, agregados, escravos, víveres, mudas, sementes, lote de gado, ou seja, com o indispensável para o estabelecimento definitivo de toda aquela gente. Acerta-se com Manoel Vieira de Souza e dos negócios derivam os casamentos entre membros das duas famílias (5).

Além deles, é evidente que, antes de José Antônio Pereira, outras pessoas transitaram por estas paragens. Inegável, porém, é o fato de que a vinda de José Antônio Pereira, em sua segunda viagem, de 1875, com expressivo contingente, tenha importância indiscutível na formação do Arraial de Santo Antônio de Campo Grande.

Se 26 de agosto de 1899 representa o primeiro ato oficial de reconhecimento de Campo Grande, 21 de junho de 1872 e 14 de agosto de 1875 são igualmente importantes, caso não tivessem acontecido, Campo Grande não se tornaria município; ignorá-las significa eliminar mais de duas décadas da história de nossa cidade.

Assim, quando se celebra a nossa autonomia, não se pode omitir outra data significativa para a existência de Campo Grande. Logo, por absoluta justiça, há de ser celebrado também o sesquicentenário da chegada de José Antônio Pereira nesta terra.

 

* Paulo Eduardo Cabral é sociólogo e professor. Ocupa a cadeira n.  22 do IHGMS (patrono: Hélio Serejo). Presidiu a entidade no período de 6 de novembro de 2016 a 31 de dezembro de 2018.

Referências: 1, 3 e 5 – Figueiró Ricardo M e Figueiró Thiago – “1929-2020 Centenário da Excursão Presidencial ao Sul de Mato Grosso”, Campo Grande, IHGMS, 2021; 2 – Gomes, Arlindo de A. – “O município de Campo Grande em 1921”, Campo Grande, IHGMS, 2ª ed., 2013; 4 – Pereira, Eurípedes B. – “História da Fundação de Campo Grande”, Campo Grande, IHGMS, 2ª ed., 2018.

*** Foto da comemoração da elevação de Campo Grande à categoria de Cidade (16 de junho de 1918) – Acervo Arca/FCMS.

 

 

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As águas de Campo Grande

Regina Maura Lopes Couto Cortez*

 

 

Reza a lenda que Campo Grande nasceu no encontro das águas do Prosa com as do Segredo. Poesia pura... mas para por aí. Procuramos tanto nossa identidade cultural, mas de onde ela vem? De onde, senão da construção de nossos costumes e da relação com o meio social e ambiental em que vivemos?

Importantíssimo se faz reconhecer o índio, o paraguaio, o negro e todos os povos  que vieram para essas cercanias e que somos nós. Mas a conversa hoje é ainda sobre outra questão.

Nascida das águas, Campo Grande foi, ao longo de sua ocupação, negando essa pré existência, assim como aquelas outras, talvez em busca de uma identidade exógena, eclética, que acredita que o belo é sempre o outro e nunca nós mesmos.

Além do Prosa e do Segredo, a cidade tem cerca de 13 córregos que nascem na área urbana, responsáveis por alimentar rios maiores. Mas lamentavelmente a água não faz parte de nossa paisagem urbana. Não é elemento de composição nem de valorização da qualidade da vida local através do uso ou da contemplação.

Sua mais nobre contribuição é como via marginal. Marginal... a palavra tem realmente força criadora. Quer ver mais uma? “Fundo de vale”! Como pode ser paisagem se é fundo?

E a cidade foi sendo ocupada assim. Muitos das novas gerações não sabem que embaixo da rua Maracaju corre canalizado, solitário, escuro e envergonhado um córrego, que se chama... Maracaju. Nem que embaixo do Sam’s Club nasce um córrego de nome Reveilleau, que igualmente envergonhado encontra com seu amigo Maracaju embaixo do Pão de Açúcar e seguem ambos amargurados para o Segredo.

Teve um tempo, em 1991, que tivemos uma esperança. Foi quando da elaboração da Carta Geotécnica da cidade (a primeira do Brasil a ter uma carta geotécnica que cobria toda a área urbana!). Tínhamos então um instrumento que descrevia as características geotécnicas de nosso território, identificava as qualidades e fragilidades de nosso solo, os locais mais propícios ao adensamento urbano e os que deveriam ser preservados por possuirem características não compatíveis à ocupação, principalmente as áreas de nascente e de lençol freático superficial (alagadiças).

Pensamos que a partir dali tudo seria diferente e, juntamente com o Plano Diretor, teríamos uma ocupação urbana ambiental e socialmente sustentável. Inclusive o Plano Diretor propôs naquele momento (1995) a divisão da cidade em Regiões Urbanas, cada uma delas nomeadas pelo nome de sua bacia principal. Assim surgiram, além da Região Urbana do Centro, as Regiões Urbanas do Segredo, do Prosa, do Bandeira, do Anhanduizinho, do Lagoa e do Imbirussu.

O sonho era promover um desenvolvimento urbano social e ambientalmente sustentável, fundamentado em dois pilares principais: 1. Identificação do cidadão com o “seu” lugar, como quem diz – “eu sou da Região Urbana do Bandeira”, por exemplo. E, a partir daí buscar saber que lugar é esse, quais são suas peculiaridades etc.; e 2. Instituir, para cada Região Urbana um Plano Local, identificador de sua vocação econômica, social e cultural. Identificar Polos de Desenvolvimento Local que “engordariam a cidade”, diminuiriam os vazios urbanos, tornando-a mais compacta, mais viva, com melhores relações comunitárias. Solidária.

Não vingou. As Regiões Urbanas são apenas nomes que poderiam ser quaisquer outros, o sentido se perdeu.

Hoje, após duas revisões do Plano Diretor, estamos correndo o risco de viver novamente as mazelas passadas. A identidade ambiental se perdeu, de acordo com o Plano Diretor atual, a Área de Expansão do Perímetro Urbano ficou  inexplicavelmente extensa demais, correndo o risco de voltarmos a ter imensos vazios formados por propriedades que não cumprem sua função social, cujo conceito significou uma grande vitória dos urbanistas que conseguiram colocar, à época da elaboração da Constituição Federal de 1988, dois artigos que tratam da Política Urbana, regulamentados pelo Estatuto da Cidade em 2001.

Apesar de todo o processo de planejamento e da elaboração de importantes instrumentos, continuaremos a vivenciar problemas urbanos decorrentes da ocupação inadequada, fruto de um modelo de cidade que prioriza o lucro em detrimento das pessoas e do meio ambiente até que entendamos que a única saída que temos é reconhecer que o território se impõe. Que é a partir do reconhecimento de suas particularidades que deve se dar a ocupação urbana. Que a Cidade Saudável se constrói respeitando sua geografia e, sobretudo, suas águas. Sabemos bem do que elas são capazes quando se revoltam.

 

* Regina Maura Lopes Couto Cortez é arquiteta e urbanista, especialista em direito ambiental e ensino de arquitetura. Associada do IHGMS, cadeira número 13 (patrono: Jango Mascarenhas).

** Foto do Prosa: Paulo Robson de Souza (Revista Arca n. 14); rede hidrográfica de Campo Grande (em azul) – croqui baseado em figura da tese de doutorado de Gutemberg Weingartner.

 

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Nas origens de Campo Grande, que nasceu no encontro dos córregos Prosa e Segredo, muitas datas e personagens merecem ser lembrados. Nas imagens, comemoração por sua elevação à categoria de Cidade; aspecto do Prosa; e croqui do perímetro urbano com os diversos córregos que cortam o território.

Autor: Paulo Eduardo Cabral

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