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13/10/2023

As aves que aqui gorjeavam, não eram as mesmas de lá.

 

MT-MS

 

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Trabalhar na seleção e catalogação do acervo documental de José Octávio Guizzo é fascinante. Tem de tudo e mais um pouco: recortes de jornais, entrevistas com artistas e promotores culturais do país todo, uma infinidade de cartas... correspondia-se com gestores culturais nos mais diversos aspectos – artes plásticas, cinema, teatro, música...

A cada recorte uma surpresa! Seus escritos pessoais denotam quão grande era sua diversidade de interesses, sua amplitude no conhecimento da cultura do Sul de Mato Grosso. Neste artigo, que ora reproduzimos, um pouco da sua maneira de pensar a divisão do antigo estado e a criação de Mato Grosso do Sul.

Os escritos estão sem data, mas pelas referências ao governo de Mato Grosso, estava como governador Júlio Campos (PSD – 15/3/1983 a 15/05/1986) e era campanha pela eleição de Tancredo Neves que, vencedor no pleito, tendo como adversário Paulo Salim Maluf, aconteceu em 1984, com posse em 1º de janeiro de 1985. (Maria Madalena Greco)

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As aves que aqui gorjeavam, não eram as mesmas de lá

José Octávio Guizzo*

 

Longo isolamento

Logo após o descobrimento do Brasil, Aleixo Garcia, Cabeza de Vaca e tantos outros viajantes pervagavam o nosso antigo Mato Grosso. A bibliografia a respeito daquelas expedições são tão poucas e raras, que ainda hoje a nossa história antiga é praticamente desconhecida.

Todos nós sabemos que uma vez esgotado o ciclo do ouro no antigo Mato Grosso, o poder central do Império esqueceu-se por completo da província. Nós, mato-grossenses, vivemos à época um longo período de isolamento e, justiça seja feita, os cuiabanos, permanecendo na região, se constituíram em sentinela avançada na conquista territorial portuguesa. Radicados ali, vivendo para si só, eles forjaram uma base da hoje reconhecida tradição cultural cuiabana.

Esse isolamento, somente seria rompido em fins de 1864, quando da invasão paraguaia que se deu justamente nesta parte sulina do Estado, por estar ela praticamente desguarnecida. Somente aí a Coroa voltou as vistas para a província e nós fomos, então redescobertos.

Sem querer entrar no mérito da nossa pré-história, o que se constata é que naquele período as comunidades indígenas, que aqui habitavam, não eram as mesmas de lá. O contingente da população escrava e negra no Norte era infinitamente maior do que a nossa e até as aves que aqui gorjeavam, parece-nos, não eram as mesmas de lá.

 

Ocupação e colonização

O fato é que com o fim da guerra deu-se início ao efetivo processo de ocupação e colonização desta parte sulina do antigo Estado; foi quando ocorreu a fixação do elemento humano nessa região e quando se estabeleceram, definitivo, os nossos limites territoriais.

O gado descendo o Vale do São Francisco, em busca de nossos campos passariam das terras de Minas Gerais para os chapadões goianos e dali para o território mato-grossense. Essa marcha permitiu o surgimento do vilarejo de Sant’Anna do Paranayba que se converteria em porta de entrada dos colonizadores mineiros.

Dali se expandiria para os campos da Vacaria, onde surgiram as primeiras fazendas, depois, em direção ao Sucuriú e ao Verde, alcançaram a região central da Província. O certo é que no período proporcionou-se o primeiro e grande momento da ocupação.

Mais tarde, no pós guerra, surge no cone Sul a exploração econômica do quebracho e da erva mate; este ciclo propiciaria a criação de Porto Murtinho, Bela Vista e Campanário.

No extremo Oeste do Estado e do país, com o restabelecimento da navegação fluvial, nossa principal via de penetração, florescia Corumbá que, nas últimas décadas do século XIX e início do século XX, passaria a adquirir o status de principal entreposto comercial, responsável mesmo pelo desvio econômico da região Norte para a sulina do antigo Estado unificado. Sendo ponto terminal da navegação internacional ensejou a fixação de fortes correntes de imigração estrangeira que buscavam se estabelecer no Estado.

A ligação ferroviária de Itapura a Corumbá, cortando de Leste a Oeste o Estado de Mato Grosso e interligando-o no contexto nacional propiciaria a gradativa desativação da navegação fluvial e o deslocamento do eixo da economia sulina de Corumbá para Campo Grande, que a partir daí tomaria um impulso inusitado. E o trem permitiu o escoamento de nossa produção pastoril ao mercado consumidor paulista e trouxe em seu bojo grande fluxo de imigrantes para o novo “Eldorado”. Os núcleos de condensação humana já não mais se constituíam ao longo dos rios, mas sim, às margens da ferrovia. Ferrovia, por sinal, que não chegou à região Norte do antigo Estado unificado.

 

Complexos culturais distintos

Aliás, todo o processo de ocupação e colonização entre o Norte e o Sul foi distinto. Enquanto lá o isolamento perduraria ainda por longos anos, aqui no Sul de Mato Grosso foi aberto propiciando a formação de uma população heterogênea, o que torna a nossa cultura, hoje, marcadamente pluralista, bem como a nossa sociedade tipicamente cosmopolita; o clima, a topografia e a vocação econômica, o biotipo físico do nortista são inteiramente diferenciados.

Resta-nos saber, quais são os traços distintivos dos complexos culturais de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.

Ainda que numa análise circunstancial, nós possamos constatar ter sido mínimo o legado cultural do Norte em nosso Estado, senão vejamos: Qual o sul-mato-grossense que possui o hábito arraigado de tomar guaraná ralado todas as manhãs e comer peixe com banana? Quais foram as influências da literatura acadêmica e mesmo a não acadêmica (como o poema-processo de Cuiabá) foram exercidas em nossos escritores do Sul? Quais as influências no teatro, em cuja área os cuiabanos possuem longa tradição? O cinema, dentre nós, foi praticamente exercitado no Sul do Estado que, inclusive, em termos de contexto regional possui o maior acervo fílmico de nossa memória cinematográfica.

No terreno da música as nossas influências são marcadamente uma herança da cultura Guarani (polca, guarânia e até mesmo o rasqueado) e em menor escala a música andina. No Norte, no campo do folclore, cultivou-se a marujada, a cavalhada e a congada (herança cultural negra) que aqui não foram assimiladas. Mesmo o cururu e o siriri, que praticamos aqui no Sul, estão circunscritos apenas na região de Corumbá. Por isso elas não se constituem, como querem alguns, em nossas principais notificações folclóricas. A catira, que recebemos do interior de São Paulo ou o cateretê mineiro é praticado em larga escala em nosso Estado e o pericon ou pericão que recebemos via bacia do Prata também é muito mais conhecido no Mato Grosso do Sul do que aquelas manifestações.

Por acaso, dentre nós, proliferou o aprendizado dos maravilhosos trabalhos das rendeiras cuiabanas? Ou de seus artistas plásticos do Norte? Que contribuição eles deram para a formação dos nossos? A língua, sabemos nós, é a base cultural de um povo. O falar cuiabano (dos, três, catcho, tchupa, de más, cotchipó, cadju...) não foi absorvido pela nossa tradição oral. Um estudo da dialetologia em Mato Grosso nos revela que a linguagem cuiabana (e do Norte em geral) estratificou-se, dentre outros fatores, pelo distanciamento da região com outros centros econômicos brasileiros, longe da informação do “moderno”.

A história dos povos registra diversos processos de colonização que usualmente começam pela sub-reptícia imposição de padrões culturais, de usos e costumes do agente colonizador para o colonizado.  

Intramuros, no nosso caso, a famosa zona de influência cultural da “cuiabania” (neologismo criado para determinar regiões circunvizinhas da antiga capital) nunca atravessou a linha divisória dos dois Estados.

E não categorizando e/ou conquistando culturalmente, com o passar dos tempos, foi-se criando um distanciamento cada vez maior entre nortistas e sulistas do antigo Mato Grosso.

 

Separação consentida

A não integração e/ou interação cultural entre as duas regiões aprofunda o divórcio sócio-político-econômico existente entre ambos, inexistindo, por vias da consequência o elo que deveria haver, naturalmente, entre os dois povos.

Na concepção antropológica o termo cultura é um processo global, no qual não se separam as condições do meio ambiente daquelas do fazer do homem, em que não se privilegia o produto em detrimento das condições históricas, socioeconômicas, étnicas e do espaço ecológico em que tal produto se encontra inserido. Para nós todo desenvolvimento social, político ou econômico nada mais é do que o processo cultural de um povo em marcha. Cultura é a vida, como muito bem a define o ex-ministro francês da educação Jack Lang (1939...).

E como as nossas vidas, ou nossos universos culturais eram distintos, após quase um século de desentendimentos (que foi da luta armada até a consumação da divisão, que acabou vindo de cima para baixo) deu-se os trâmites por findo. Pelo mais que dos autos consta, as partes encontram-se satisfeitas com a separação que se não foi consensual, ao menos consentida foi e, até hoje, não se manifestaram o menor desejo de reconciliação. Ao que tudo indica, a incompatibilidade de gênios continua manifesta, tanto assim que o governo de lá é PDS e “malufou-se e o daqui é PMDB e quer Tancredo Já!!!”.

 

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* JOSÉ OCTÁVIO GIZZO foi advogado, jornalista e pesquisador da cultura regional. Premiado em festivais de música popular, montou peças de teatro e participou de filmes como o de Nelson Pereira dos Santos sobre a memória do povo sul-mato-grossense a respeito da Retirada da Laguna. Seus livros foram: “Esboço histórico do cinema em MS” (1974), “A moderna música popular urbana de Mato Grosso do Sul” (1982), “Alma do Brasil” (1985) e “Documento preliminar - política estadual de cultura” (1981). Primeiro presidente da Fundação de Cultura de MS, José Octávio Guizzo faleceu em 1989 aos 51 anos. Pelo que representa para a vida cultural sul-mato-grossense deu nome ao teatro do Paço Municipal e ao Centro Cultural de Campo Grande.

 

** O original deste texto integra o acervo documental de José Octávio Guizzo doado ao IHGMS e que está sendo digitalizado. A versão física está disponível para consulta agendada previamente. Intertítulos foram inseridos na edição da matéria.

 

*** Crédito imagens: montagem de foto com ilustração de Jacinto publicada na revista Cultura em MS - n. 1 - 2018; demais imagens: acervo Arca e arquivo Correio do Estado reproduzidas do livro “Mato Grosso do Sul - a construção de um estado” de Marisa Bittar.

 

 

Imagens: Reprodução

 

 

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No último dia 11 Mato Grosso do Sul completou 46 anos. Embora sua criação tenha ocorrido por decisão do poder central, a deliberação contemplou um antigo anseio da população da parte sul do Mato Grosso uno cuja história e identidade cultural não se alinhava com a da parte norte como bem descreve José Octávio Guizzo no artigo desta página. Nas imagens, Guizzo em ilustração reproduzindo alguns símbolos da história regional; assinatura da Lei Complementar n. 31 de 11 de outubro de 1977 que criou o novo Estado; comemoração de divisionistas na região central da capital; presidente Ernesto Geisel e governador Harry Amorim saúdam a população no Estádio Morenão no dia primeiro de janeiro de 1979, data da instalação do novo governo em solenidade realizada no Teatro Glauce Rocha. Na foto maior, o povo na rua celebra o nascer de Mato Grosso do Sul. 

Autor: José Otávio Guizzo

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